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Ana Xavier de Lima

1933 - 2020

Era fácil encontrar dona Ana sentada ao lado de seu grande amor, apreciando o gado e acariciando os animais.

Dona Ana Xavier foi uma pessoa doce, amorosa e direta. Mas acima de tudo, uma mulher que ensinou a todos a prática de partilhar aquilo que tem e que expressava alegria, mesmo nos momentos de desafios da vida.

Comecemos pela doçura. Com um simples olhar, cheio de intenção e brilho ela era capaz de dizer tudo sem dizer uma só palavra para expressar seus sentimentos. E assim, no simples da vida, no cotidiano dos acontecimentos, sempre estava pronta para acolher, aconselhar, acalentar.

A amorosidade é outra característica marcante de dona Ana. Seu jeito meigo se expressava com todos da enorme família. Contudo, no dia a dia de uma propriedade rural chamada carinhosamente de fazenda pela família, estava sempre ao lado do grande amor de sua vida Gabriel Monteiro. Foram 69 anos de convivência, durante a qual geraram treze filhos, que deram a eles trinta netos e vinte e seis bisnetos.

No comum da vida do casal, onde um estava, o outro também estava por perto. À moda antiga, ela fazia questão de servir a refeição e separar as roupas para seu Gabriel na hora do banho. A neta Ana Paula, ressalta que não consegue imaginar a figura da avó sem a companhia amorosa do avô. No final da tarde, era fácil encontrar os dois sentados perto do curral olhando o gado. Eles tinham muito cuidado e zelo com as criações que eram chamadas pelo nome. Dona Ana e Seu Gabriel gostavam de acariciar as vacas e seus bezerros.

Da ordenha das vacas recém paridas vinham o leite e o queijo saboroso, feito de forma artesanal por dona Ana. Na memória de muitos familiares, está o sabor do leite fervido longamente no fogão a lenha que, aos poucos, ia ganhando uma coloração amarelada e ficava grosso e mais encorpado.

Do quintal, vinham também a mandioca e frutas tais como laranja, limão, acerola. Para dona Ana ter frutos frescos para servir aos familiares era um orgulho. Mesmo “não dando mais conta dos excessos da roça, minha avó, do seu jeito simples, fazia uma comida deliciosa” acrescenta Ana Paula. O prazer dela era ver as pessoas comendo o que ela fazia. Mesmo que alguém inicialmente não aceitasse algum quitute, acabava provando porque do contrário ela não ficava sossegada. Em relação ao filho Edson, toda vez que preparava algum prato um pouco mais gorduroso ela dizia que iria deixar “para o Edson que ele vai gostar de comer”.

Nos finais de semana a casa de dona Ana e Seu Gabriel ficava movimentada. Sempre algum dos filhos ia para a fazenda. Quando um deles chegava, Seu Gabriel anunciava “seus filhos chegaram”. E ela com um sorriso no rosto respondia “é só meu né?”, em meio ao cheiro do feijão já cozinhando no fogão a lenha.

Na volta para a cidade, ninguém saia de mão vazia. Daquilo que tivesse no momento, podia ser um pedaço de rapadura, um pãozinho caseiro, ou frutas de época, Ana fazia questão absoluta de presentear. Na infância, os netos iam para a fazenda durante as férias escolares. E com os presentes da avó na hora de retomar o cotidiano da cidade, a volta era uma grande festa de sabor e partilha.

Todos os anos, na época das águas, no silêncio do quintal, dona Ana e seu Gabriel sempre plantavam milho. Com a idade, mais gente passou a ajudar. E na colheita, acontecia um evento grandioso, pelo número de pessoas presentes e pelo que de fato acontecia. O quintal não cabia tantos carros, a casa se enchia de filhos, netos, bisnetos e amigos. O encontro era uma grande festa de alegria e todos ajudavam a colher o milho e a fazer pamonhas. Tudo feito artesanalmente, do jeito tradicional, com queijo e com tempero para todos os gostos. Tinha pamonha doce, de sal, temperada com gordura de porco ou com óleo vegetal. No fogão de lenha, panelas diferentes eram usadas no preparo da massa e no cozimento de cada receita separadamente. A alegria do preparo terminava com um aroma delicioso de milho cozido e com a partilha das pamonhas. Todos comiam. Para aqueles que eventualmente não podiam estar presentes, Dona Ana preparava pequenas sacolas com pamonhas de sabores adequados aos gostos de quem iria ganhar o mimo.

A partilha também acontecia no momento do abate de porcos, criados para o consumo da família. O filho Manoel era o responsável pelo abate, por separar os cortes de carne, retirar a banha para fazer torresmo, a retirada da gordura para o uso constante da família. Dona Ana fazia questão de separar porções igualmente calculadas de carne para cada um dos filhos. Quando mais idosa, eram as filhas quem faziam este trabalho sob o olhar atento da matriarca, que determinava a função de cada uma na partilha da carne do porco.

A quarta característica de Ana Xavier era seu jeito direto de ser e dizer as coisas. Muito lúcida e atenta a tudo, gostava de gerenciar as coisas na fazenda. Ao perceber que seu Gabriel estava fazendo as coisas devagar, dizia a ele que “você já está velho, mas tem que continuar trabalhando para ficar bem. Vai cuidar do gado... vai tratar das galinhas... vai buscar ovos no galinheiro”.

Por fim, a alegria de dona Ana. Qualquer um podia chegar e contar o que fosse. Ela ouvia atenta e entendia. Até nas situações difíceis se mantinha firme e aconselhava sem perder a alegria. Ela costumava sugerir que a pessoa pensasse e encontrasse algum outro modo de fazer a mesma coisa, reafirmando que no final tudo se resolveria. Terminada a conversa, seguia seu dia e seus afazeres na felicidade habitual. A neta Ana Paula conta que não se recorda de nenhuma situação em que tivesse visto a avó triste.

Para Ana Paula, dona Ana foi uma “mãe passada no açúcar”. Depois do falecimento de Juraci, filha mais velha e mãe de Ana Paula, Dona Ana, de uma forma natural e carinhosa, parece ter transferido para a neta o amor que sentia pela filha. Costumeiramente dizia à neta “eu te amo como se fosse minha filha”. A recíproca também é verdadeira e Ana Paula conta que com a ausência da mãe se apegou muito à avó. Nos encontros das duas, primeiro a neta pedia a benção e em seguida dava uma “bicotinha”, beijo rápido na boca. Karina, outra neta, e Mário um dos filhos, também tinham o mesmo hábito de dar um selinho em dona Ana toda vez que se encontravam.

Por falar em pedir a benção, dona Ana sempre ensinou aos filhos, a pedir a benção como forma de respeito e tradição. Com uma peculiaridade. No dia da celebração da paixão e morte de Cristo, o pedido de benção para os avós e os padrinhos de batismo aconteciam de joelhos. Tradição passada pelos filhos aos netos e pelos netos aos bisnetos.

Ana Xavier segue viva, na preservação dessa tradição; nos momentos em que em alguma casa da família é servido um delicioso pão caseiro (cuja receita era uma das marcas dela) e na partilha do que cada um da família faz com os parentes.

Ana nasceu em Formosa (GO) e faleceu em Formosa (GO), aos 86 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Ana, Ana Paula Monteiro Xavier Basso. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Walker de Barros Dantas Paniágua e moderado por Rayane Urani em 30 de setembro de 2021.