Sobre o Inumeráveis

Ananias Gomes do Nascimento

1936 - 2020

Ler livros de bolso e conversar eram suas distrações depois do trabalho, sempre recostado em sua poltrona favorita.

Um rosto fino e longo que abrigava um olhar, desses que diz sem palavras, e um sorriso cândido, emoldurado por sua pele queimada pelo sol. Um brasileiro que atravessou a história do país desde a década de 1940 para, na capital cearense, ser forte na medida em que a vida e o tempo solicitaram.

Tendo cursado apenas o antigo ginasial, o conhecimento profissional de Ananias foi sendo construído empiricamente, na gestão de obras. Como era comum na sua época, o aprendizado acontecia com o repasse de conhecimento por outros mestres mais experientes. O fato de ser muito inteligente facilitou seu aprendizado e, mesmo com pouco estudo, fazia a planta de uma casa como ninguém. Habilidades tão necessárias no fazer do trabalho, tais como liderança, escuta atenta de clientes e trabalhadores, maestria na condução de relações e solução de problemas diários, transitavam também para seu modo de viver e se relacionar com pessoas no universo pessoal e familiar.

É certo que Ananias não foi um homem perfeito, capaz de todas as unanimidades. Contudo, na simplicidade de seus modos, o mestre de obras teve como sua principal obra a construção de um legado de sabedoria, que morava no íntimo de um homem carismático, comunicativo, acessível a todos e com um enorme senso de justiça. Nas conversas com ele, tudo vinha à tona, numa fala compassada e reflexiva.

Ananias sempre foi muito querido pelos filhos Liduína, Roberto, Leandra e Ricardo. Frutos da relação com Raimunda Nascimento, foram educados na dignidade de uma vida simples, sabendo valorizar as pequenas coisas, mesmo nos momentos difíceis.

No convívio com Leandra, um acontecimento merece ser destacado. De manhã, Seu Ananias gostava muito de ir até a casa da filha para tomar café. Ele chegava, puxava um assunto e logo dizia “Lequinha, cadê o meu café?”. O que ela servia pouco importava. O fundamental era o ritual de sentarem-se à mesa e conversar, enquanto saboreavam uma xícara de café quente coado na hora pela filha, que admirava suas palavras sempre amigas, de otimismo, fé e força. Por sua vez, em diversos momentos, Ananias desabafava com Leandra e recebia dela palavras de conforto e carinho. Mesmo em sua sabedoria, não se furtava a pedir alguma opinião e conselhos.

Recordando e revendo a história, Leandra diz que “embora a gente tenha passado por muitas dificuldades, ele sempre batalhou para não deixar faltar nada para a nossa família”. Ela ressalta que, do jeito dele, Ananias sempre foi muito amoroso com os filhos e, com o avançar da idade, ficou ainda mais carinhoso.

Por sua vez, Liduína diz que falar do pai é fácil e traz boas lembranças de uma pessoa justa, íntegra e que nunca quis nada de ninguém. Ela recorda que Ananias “sempre nos ensinou a sermos pessoas certas, corretas. O que a gente via na casa dos outros poderia ser ouro, mas tinha que ficar lá". Orgulhosa do pai, a filha conta que ele era uma pessoa tão boa que às vezes esquecia-se de si mesmo. Se sentisse necessidade de ajudar alguém, Ananias não hesitava e oferecia o que tivesse.

Sempre muito calmo e tranquilo, Ananias sabia como chegar e como sair dos lugares. A todos da família sempre ensinou a importância de obedecer, “a qualquer custo”, aos mais velhos e àqueles que de alguma maneira estivessem ocupando uma posição de liderança. Importante esclarecer que Ananias considerava como líder qualquer pessoa que, por seu fazer ou conhecimento, estivesse à frente de alguma situação. Neste coletivo, ele incluía pais, avós, o policial, o professor, o médico, o motorista na direção de um ônibus, a quem, no exercício desses papéis sociais, Ananias dedicava todo respeito.

Ao longo da vida, a família de Ananias aproximou-se de uma igreja pentecostal. Ele tomou gosto por frequentar os cultos e, graças a seu jeito cativante e comunicativo, em algum tempo tornou-se porteiro da igreja. E assim, o que ele tão bem fazia em casa, passou a fazer também na entrada do templo. Ele desejava boa noite e acolhia a todos da mesma maneira, não importando se já frequentassem os cultos há mais tempo ou se fosse a primeira vez. A simpatia era tanta, que muitos acabavam ficando amigos de Seu Ananias. Muito caseiro, ele sentia grande alegria quando os companheiros de crença iam visitá-lo em sua casa.

Em harmonia com a fé do avô, o neto Diego imagina que Seu Ananias gostaria de ter em sua lápide um versículo bíblico. “Felizes os mortos que descansam no Senhor, [...] pois eles descansarão das suas fadigas, e as suas obras os seguirão para sempre". No entendimento do neto, a citação do livro do Apocalipse 14:13 remete ao modo como Ananias, além de trabalhar em obras, foi também construtor da própria vida, bem como de muitos que amou.

A relação de Ananias com os netos esteve repleta de momentos encantados e que não podem deixar de ser narrados. O “velho amigo”, como define o neto Diego, seguiu como ponto de referência durante todo o tempo em que ele pôde conviver com o avô. Com um ar de felicidade, Diego conta que quando levava seus amigos de juventude para a casa de Seu Ananias, ele logo vinha conversar e interagir com quem chegava. “Ele era tão conversador que meus amigos conversavam mais com ele do que comigo”, explica Diego.

Certa vez, quando ainda era criança, o neto entrou em atrito com a mãe na casa dos avós. Ele queria alguma coisa e Leandra não queria dar. Percebendo a situação, Ananias, sempre calmo e de fala mansa, gritou com Diego repreendendo-o pelo fato de não estar acatando o que dizia a filha Leandra. Contornada a situação, levou o neto até uma sorveteria e aproveitou o mimo para reforçar seus ensinamentos de respeito à mãe.

Um outro fato engraçado aconteceu envolvendo os dois na adolescência de Diego. Certa vez, Ananias encontrou alguns objetos deixados pelo neto na casa dele. O avô, que de alguma maneira viveu a segunda guerra mundial, ficou muito bravo, assustado e preocupado quando encontrou sobre uma mesa alguns símbolos associados ao nazismo. Irritado e temendo a possibilidade de que o neto estivesse se tornando um simpatizante do nazismo, mal esperou Diego entrar em casa e foi logo querendo saber o que se passava. Diego conta sorrindo que pediu calma ao avô e explicou que eram apenas adereços que usaria para compor o figurino do personagem principal de uma peça teatral na escola, quando representaria o papel de Hitler. Como não poderia deixar de ser, o enredo da encenação refletia sobre os horrores do nazismo, criticando duramente a ideologia associada àquele ditador. Tudo explicado, o cuidadoso avô recuperou o sossego e a calma.

Com a neta Sarah Jamile não foi diferente e ela também têm boas lembranças de Seu Ananias. “A figura dele para mim é a da honestidade e da criatividade. Até hoje tenho os brinquedos de madeira que vovô fez para mim. Não sei se vou conseguir me desfazer deles algum dia".

Se a questão era cumplicidade, a neta também podia contar com o avô. Durante o tempo em que morou na casa dos avós, Dona Raimunda, por ordem de Liduína, mãe de Sarah, não deixava que ela comesse os biscoitos reservados para o lanche da escola. Tampouco deixava que a menina comesse fora de hora. Como toda criança, Sarah dava um jeito e pegava guloseimas para comer “escondido”. Menos de Seu Ananias, que, quando via, balançava a cabeça, ria e fingia que nada tinha acontecido.

A partir de certa idade, Ananias foi perdendo a memória, em decorrência do avanço do Mal de Alzheimer. Dono de uma alma generosa, mesmo depois que a doença levou sua memória e ele nem conhecia mais as pessoas, continuava tratando a todos com gentileza. Sarah recorda que os últimos anos de convivência com o avô foram maravilhosos. Ainda que ele não se lembrasse dela.

A neta Danielle, conta com felicidade que o avô conservava também o senso de humor. Quando via a moça, por chamada de vídeo, dizia “eu não conheço essa menina, mas ela é gente boa’”. Um carinho incondicional pelo Seu Ananias também é compartilhado pelos outros netos, Vitória e Lucas, além da nora Valdenice.

Diego era outro “gente boa” para Seu Ananias nesses tempos de Alzheimer. Antes disso, no tempo em que o avô apresentou os primeiros sinais de perda da memória o neto mudou-se de Fortaleza. Por razões que ninguém explica, Diego recebeu um conselho de uma amiga. A dica era para que, quando visse novamente o avô, aproveitasse cada instante e dissesse a ele o quanto o amava. É que, na visão intuitiva dela, havia grandes chances de que numa de suas voltas à cidade natal Diego não mais o encontrasse.

E de fato, o Seu Ananias dos últimos tempos era diferente daquele que protagonizou lindas cenas, que certamente contribuíram muito para o que aqui é narrado. Uma delas, que envolvia Diego e Seu Ananias, acontecia rotineiramente na sala da casa dos avós. Durante muitos anos o menino, depois adolescente e mais tarde adulto, sentava-se no chão ou no outro sofá para conversarem. Os assuntos eram especialmente política, a sociedade brasileira e o futebol. A partir do noticiário dos telejornais e programas esportivos, Ananias expressava sua visão de mundo e seu posicionamento diante dos fatos noticiados. Invariavelmente, os comentários eram norteados por princípios tais como senso de integridade, respeito ao outro e ética, que Diego acolhia com ouvido atento e olhar carinhoso para a figura do avô. Ali sentado na sua poltrona, a figura de seu Ananias remetia o imaginário de Diego para a figura do “velho sábio”.

Quando perguntado sobre o que ou quem seria o avô caso ele não fosse uma pessoa, após um breve momento de reflexão, Diego respondeu que Seu Ananias seria uma coruja. A razão é a associação do animal às virtudes de sabedoria e vigilância. “Meu avô sempre buscava manter ou — quando o perdia — retomar o modo equilibrado e sereno de ser, porque, em sua ponderação, não gostava do lugar do excesso”, complementa o neto.

Como fica evidente, Nascimento, sobrenome que une toda uma família — e vocativo usado orgulhosa e carinhosamente por Diego para se referir ao avô em alguns momentos —, fez nascer nele algumas sementes. O neto faz questão de ressaltar que a iniciativa de prestar esta homenagem ao seu “velho amigo” também decorre de um outro ensinamento dele. O de sempre respeitar a memória e o passado das pessoas. Saudoso e agradecido, o neto diz que “o Diego que sou hoje é, em muitos aspectos, fruto de uma convivência carinhosa” que lhe ensinou muito do que é base para sua caminhada pela vida. Ele também atribuiu ao avô sua curiosidade para saber das coisas e sua paixão pelo conhecimento.

Ananias segue vivo na lembrança de Liduína de ver o pai assistindo ao seu jornal ou lendo um livrinho de bolso depois do trabalho; nos agradecimentos e dedicatórias dos Trabalhos de Conclusão de Cursos de graduação e pós-graduação de seus netos, onde sempre houve e haverá espaço especial reservado para lembrar do avô; na saudade do abraço magrinho dele e dos conselhos recebidos pela neta Sarah enquanto o avô tinha boa memória; nas lembranças desse homem, tão especial e cativante, que permanece na mente e no coração daqueles que, honrosamente, conviveram com ele; na certeza de Diego, que, citando Rubem Alves, lembra: “O que a memória ama fica eterno”.

Ananias nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo neto de Ananias, Diego do Nascimento Mendonça. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 24 de março de 2022.