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Ângelo Morales Gonsales

1931 - 2020

Passou 40 dias em um barco pesqueiro, fugindo da ditadura de Franco. No Brasil, formou sua família.

Antes de pisar no Brasil pela primeira vez, mais ou menos aos 13 anos de idade, Ângelo fez uma travessia de 40 dias pelo Oceano Atlântico, em um barco pesqueiro. Era década de 1950, e ele fugia da ditadura de Franco, na Espanha, sua terra natal.

Saiu de casa no meio da noite, escondido do pai e da mãe, acompanhado de vizinhos. O único documento que levava consigo era a sua certidão de batismo, a qual deu à Marinha, quando chegou ao litoral maranhense, para assim obter sua cidadania brasileira, e nunca mais a teve de volta.

Apenas em 2019, cerca de 76 anos depois de pisar em terras tupiniquins pela primeira vez, que a família conseguiu descobrir que ele sempre escreveu seu sobrenome com “s” em vez de “z”, como era na Espanha. Também deu a data de nascimento de 2 de abril de 1934, no lugar do dia que realmente nasceu: 9 de setembro de 1931. Tais erros viraram uma espécie de brincadeira na família, já que ele sempre fez questão que todos escrevessem o sobrenome com “s” e preenchessem formulários com muita atenção.

Mas apesar de pequenas falhas em letras e números, tinha uma memória excelente: foi através da descrição da igreja que frequentava quando criança, que um dos netos conseguiu entrar em contato com a própria instituição e assim, recuperar documentos suficientes para dar entrada no processo de dupla cidadania, o qual não foi concluído antes de seu falecimento. “Ele tinha pequenas lembranças muito fidedignas e outras muito vagas. Era como se a gente fosse tentando montar um quebra-cabeça com ele”, recorda a neta, Fernanda Barbosa.

Mesmo não gostando de falar sobre a guerra e sobre política, adorava contar sobre sua infância na Espanha e tinha muito orgulho da sua história.

Segundo a neta, “meu vô adorava contar a sua história para os bisnetos, falava da viagem, da vida na Espanha e das perseguições que a família dele sofria lá. Ele gostava muito do Brasil, mas não perdia o carinho que tinha pela terra dele, um amor não apagava o outro.” Também tinha grande prazer em tocar seu violão e cantar músicas espanholas.

A família que construiu no Brasil sempre foi muito importante para ele. A neta Fernanda sempre foi muito próxima dos avós e conta: “Eles sempre foram minha referência, especialmente depois que minha mãe, após o divórcio, voltou a morar com eles". Ela se recorda ainda que, na infância, ele sempre costumava dizer para ela o ditado espanhol: “hijo fuiste, padre serás, cual hiciste, tal habrás”, que significa algo como: “filho que você foi, pai você será, o que você fez, como você terá”. Ao marido de Fernanda, ele dava o conselho de “sempre olhar pela família”.

Foi inclusive, no marido da neta, que encontrou um filho apaixonado por mecânica tanto quanto ele. Cultivou durante anos uma oficina no seu quintal, onde costumava passar horas do seu dia. Também era a pessoa que consertava os eletrodomésticos de todos na vizinhança, sem nunca cobrar pelo serviço. “Era muito inteligente, desmontava uma máquina como ninguém”, recorda Fernanda. “Ele consertava pelo prazer de trabalhar, adorava se sentir útil.” Se quebrasse algo em sua casa, que ele mesmo não conseguisse encontrar o conserto; qualquer pessoa que contratasse, levava muitos dias a mais do que o normal para fazê-lo, porque seu Ângelo era o tipo de pessoa que adorava conversar e distraía todos com seu papo.

“Nunca ninguém viu o vovô triste, ele nunca estava de mau humor. Tinha um temperamento muito forte, mas era uma pessoa de um grande coração”, lembra Fernanda.

Foi fazendeiro, operador de máquinas, motorista, taxista e técnico de manutenção.

Casou-se com Eunice, o grande amor de sua vida, afilhada de um imigrante alemão para quem trabalhou numa fazenda, e permaneceu com ela por 62 anos, até a sua morte. Tiveram quatro filhos: Márcia, Ângelo Filho, Mara Regina e Nina Rose. Teve o privilégio de conhecer os netos e os bisnetos e, ainda por cima, para fechar com "chave de ouro", presenciou, com muito orgulho, a formatura de Fernanda, na faculdade de Direito.

Ângelo nasceu em Santa Cruz de Tenerife (Espanha) e faleceu em Ananindeua (PA), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Ângelo, Fernanda Barbosa. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Audryn Karolyne, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 12 de julho de 2020.