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Arismar Fonseca dos Santos

1954 - 2020

A arte da vidraçaria era a identidade dele. Dela tirou o sustento e educou os filhos, sem jamais perder a leveza.

Epitáfio: Era cheio de bom humor, criava bordões fantásticos quando gostava das coisas.

Foi numa localidade remota em meio ao cerrado, no estado do Piauí, chamada Redenção do Gurgueia, que o pai do pequeno Arismar, então com cinco anos, abandonou a família. Sua mãe, dona Maria Eunice, sem condições de criar sozinha os cinco filhos, entregou cada um deles aos cuidados de um parente e foi batalhar por uma vida digna. Seguiu o movimento migratório de muitos nordestinos que no início dos anos 60 rumaram esperançosos para a região Central do país, onde estava sendo inaugurada a nova Capital, Brasília.

O menino ficou com uma das tias, que também não tinha uma vida fácil. Assim, Arismar foi absorvido por uma rotina com poucos sabores de infância. Ele acordava todo dia às 4h da manhã. Primeiro aguava o laranjal e só depois fazia a primeira refeição à base de biju, biscoito doce e crocante de tapioca, típico do Nordeste. Vestia então a “farda” e chegava na escola para a aula que começava às 7h. Quando contava sobre essa parte de sua história, já pai e avô, ressaltava: "Eu tinha que suar primeiro pra depois comer e estudar”.

Enquanto isso, em Brasília, a destemida Maria Eunice estava em um acampamento de trabalhadores da construção civil oferecendo seus serviços como lavadeira. Aos poucos, foi juntando recursos suficientes para pagar as passagens dos filhos. Foi trazendo para junto de si um por um. Assim, Arismar chegou, no início da década de 70, à vila dos trabalhadores de Ceilândia, na periferia que se formara ao redor de Brasília, aos dezesseis anos.

Seu primeiro trabalho foi como engraxate. Depois, passou por outras atividades. Como servente de obra ganhou o apelido de Hulk, pois era muito forte, carregava sozinho dois sacos de cimento. Como jardineiro em uma empresa de projetos paisagísticos, plantou grama nos bairros nobres do Lago Sul e, finalmente, se empregou numa vidraçaria; de início como ajudante e logo se tornou vidraceiro, ofício do qual se orgulhava e nunca mais deixou de exercer.

Aos 22 anos se casou com Lusinete Melo dos Santos. Foram 43 anos de união. Um completava o outro, ela sempre agindo como uma guardiã e ele paciente, amoroso, fazendo os gostos dela.

Embora tenha frequentado a escola formal só até o 4º ano primário, era muito inteligente. Cabeça aberta, gostava de se manter bem informado, de debater política, de acompanhar os jornais. Lia muito e tinha grande interesse por Geografia e Geopolítica, apesar da pouca instrução. Possibilitou que os três filhos frequentassem a Universidade: Leila e Lelton se tornaram professores de Geografia, levando adiante o interesse do pai, e Lilian fez Contabilidade.

A arte da vidraçaria era a identidade dele. Dizia satisfeito: “Tirei com meus braços o meu sustento, eduquei meus filhos com os vidros”. Mesmo depois de aposentado, continuou como autônomo, comercializando vidros temperados, atendendo seletos clientes com seu carro onde se lia: “Vidraceiro Fonseca”.

Respeitado por sua competência e por ser um profissional de confiança, gostava de prestar o melhor serviço aos clientes, entre eles alguns nomes importantes: fez a instalação dos boxes da casa do campeão automobilista Nelson Piquet. E transmitia tudo o que sabia para os mais novos, inclusive ensinou o ofício da vidraçaria ao genro Walcilei, que trabalhava com ele.

De temperamento tranquilo, engraçado, tinha um vozeirão marcante, falava alto e usava a expressão “é só ouro”, quando uma coisa era bem boa. Para agradá-lo, nada como uma saborosa comida. Sentava à mesa com prazer. Dizia a Lelton, o caçula e grande companheiro: “Meu filho, a gente só leva dessa vida o que come”.

Gostava demais do neto e das netas: Suzana, Isaac e Ana Carolina. Foi torcedor entusiasmado do Fluminense até os 33 anos, mas deixou de se envolver com futebol quando foi batizado na congregação Cristã do Brasil em 1987, que frequentou fielmente desde então.

Uma das características marcantes de Arismar é que ficava satisfeito com coisas simples. Diante de um café com bolo feito pela nora Sheila, num ambiente familiar de boa conversa sobre política ou futebol, tudo estava resolvido, o mundo podia cair que ele estava em paz. Repetia a frase: "Deus é bom e tudo pode na nossa vida”.

Segundo Lelton, seu pai não deixou inimigos, não guardou nenhum rancor: “Era uma pessoa pura, um homem que ajudava as pessoas, despido de preconceitos, sempre mantendo a leveza.” Arismar era como os mais belos vidros que em sua pureza e transparência deixam penetrar a luz.

Arismar nasceu em Redenção do Gurguéia (PI) e faleceu em Brasília (DF), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Arismar, Lelton Melo da Fonseca. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Ana Macarini e Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 20 de agosto de 2021.