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Arlindo Cândido Limão

1930 - 2020

Homem de honra, lutador e vencedor.

Este é um tributo de Maria das Graças para seu pai, Arlindo:

Nascido em Palmeiral, um distrito de Botelhos, na divisa dos estados de Minas Gerais e São Paulo, Arlindo era filho de lavrador, morou na Fazenda Faisqueira e ali foi criado junto aos irmãos. Estudou apenas até a 4ª série primária, pois era sua prima Ordália, de 18 anos, quem lhe dava as aulas na escolinha da Faisqueira; sem mais conhecimentos para prosseguir ensinando após aquele nível, ela disse: “Quem desejar continuar, terá que ir estudar na escola em Palmeiral”. Arlindo não pôde, tinha que ajudar os pais no trabalho com a lavoura.

Tornou-se um jovem bonito. Ia passear, ia ao cinema no centro de Poços de Caldas e lá, tirou sua tão sonhada foto de rapaz formoso. Era dado ao trabalho e às amizades sinceras e corretas.

Após a morte de um irmão, aos 19 anos, em um grave acidente doméstico, a família se mudou para Primavera, um distrito no município de Uraí, no Paraná, e ele foi trabalhar como lavrador nas terras do senhor José de Souza Cruvinel ─ que viria a ser seu sogro futuramente ─, e onde Arlindo conheceu Doroti Cruvinel nas lidas da lavoura.

Doroti era uma menina séria e trabalhadora; mesmo com as roupas sujas como as de uma boia-fria que encarava a luta do dia a dia, havia nela formosura. Seus olhos verdes ─ num tom caramelo ─, e seus cabelos curtos e cacheados, registrados na foto que ela exibia orgulhosa ao relatar a história de quando, aos 14 anos, recebeu o diploma da 4ª série.

Ramiro, o irmão de Arlindo, foi quem pediu ─ em nome do irmão ─, a mão de Doroti em namoro para o Sr. José Cruvinel. Nessa época, a moça estava com 17 anos, e seu pai disse a Ramiro: “Diga a ele que se ele for homem, que venha falar comigo amanhã”. E foi feito o dito.

Quando Arlindo seguiu em direção à casa de Doroti, ela saiu correndo pelos atalhos entre o cafezal, com a desculpa que iria em casa para tomar água, mas, na realidade, queria que Arlindo a visse daquela forma para que não houvesse mais interesse nela. Estava suja do trabalho, com os cabelos despenteados e com um lenço amarrado na cabeça. Foi então que, no momento em que estava tomando água, ouviu, através da parede, o pai dizer: “Se for pra namorar e casar, eu deixo; mas digo que se você quer uma mulher para ficar limpando casa, não vai ter não. Se quer uma mulher pra te ajudar no trabalho, você vai ter, porque ela é bastante trabalhadora e trabalha mais que um homem nas minhas terras; por isso que eu 'ponho ela' pra cuidar das ruas de café. Sei que seu irmão Ramiro é trabalhador e sei que você vai ser também.”

Doroti contava que seu padrinho suspendia o arame farpado da cerca com as mãos e, com os pés, empurrava a outra parte do arame farpado para baixo. Ela passou vestida de noiva por baixo de uma cerca dessas, para poder subir na carroça e ir até o cartório onde se casou. Foi feita apenas uma foto tradicional, que dias depois souberam que não poderia ser revelada, pois o filme havia queimado. Então, pediram para que os noivos novamente se paramentassem para que fosse feita uma nova foto, mas Doroti, com raiva do ocorrido, disse: “Agora não interessa mais, perdeu a graça”.

Vieram os três primeiros filhos na casa em Uraí, foi quando Arlindo dirigiu-se até um alto retirado da casa e, lá de cima e, segundo ele, falando com Deus, disse: "Meu Deus! Eu tão longe com esses filhos, o que será deles quando crescerem? Sem estudos, sem nada..." Ajoelhado junto a um resto de tronco queimado de árvore falou: "Meu Deus, dê um sinal! Para onde devo ir com meus filhos e com minha esposa que está grávida?"

Segundo ele, escutou lá dentro do seu coração “São Paulo”. Imediatamente, Arlindo desceu até a casinha e falou com um compadre que o aconselhou: “Arlindo, não vá por esses dias não, São Paulo está em revolução, muita indisciplina lá e, se você sair daqui de Uraí e pegar estrada com essas crianças e a Doroti que está para ter a criança, será muito perigoso, espera um pouco, sossega até passar.”

Ouvia-se na rádio os relatos do ocorrido em São Paulo em 1964; foi quando o compadre ouvia dizer que havia cessado a rebeldia por lá. Arlindo organizou tudo, deixando alguns porcos capados para vender, algumas galinhas e alguns sacos de algodão e café, na esperança de receber mais algum dinheiro para ajudar a família.

Arlindo foi sozinho para arranjar trabalho, deixando a esposa grávida e os filhos Cido, Maria e Acir para trás. Quando chegou a São Paulo, juntou-se com parentes e prontamente seus tios lhe arranjaram um trabalho na pedreira da Cantareira; ele trabalharia com seus tios João e Alaor. Os tios também foram os responsáveis por dar condições para Arlindo buscar esposa e filhos. Assim, toda a família foi morar na casa do tio João. Logo foi providenciada uma casa para eles e, pouco depois, nasceu Fátima. Dois anos depois veio outra menina, Inês. Era uma alegria enorme em nossa casinha apertada e de aluguel, ele sempre foi um pai presente, um homem simples, de poucas palavras.

Toda família tem suas dificuldades e percalços, mas éramos pessoas de honra. Alimento simples, mas sempre na mesa; roupas simples, mas sempre vestidos; sapatinhos humildes, mas nunca descalços.

Em 1967, Arlindo deu a tão sonhada notícia: “Comprei um terreno em Guarulhos”. Um tio o levou até lá para mostrar o local. Minha mãe estava muito feliz, era um sonho que estava se realizando. Arlindo já estava trabalhando na região de Guarulhos por causa da mudança de casa e por conta do início das obras da tão almejada casinha. Então, Doroti passou também a trabalhar para ajudá-lo, incessantemente.

Os filhos participaram das fases de retirada de terra, do alicerce, carregaram tijolo por tijolo e todos os baldes de areia, com orgulho em ajudar o pai. Até mesmo a água potável, que ainda não havia sido disponibilizada pela companhia de abastecimento na época, foi providenciada por Arlindo e Doroti, que cavaram juntos um poço e que, além da própria casa, abasteceu toda a vizinhança por um tempo.

Ao se mudarem para os dois cômodos com um banheiro de chão batido, cobertos por telhas romanas, a família estava concretizando um sonho. Arlindo colocou um galho lindo de árvore na cumeeira e, à tarde, esse galho mostrava seu frescor ao encobrir os raios de sol do final do dia. Ao ver aquilo, a segunda filha, Maria, perguntou: "Pai, por que você coloca galhos no alto?" E Arlindo respondeu: "Para dar bastante sorte e para a gente nunca se mudar daqui".

Aos poucos, Arlindo ia finalizando a casinha. Nasceu mais uma filha, que seria a caçula Maria José. Arlindo dizia: “Igualzinho ao nome da mamãe”. Doroti dizia: “Igual ao nome da mãe e do pai de Jesus”. Enfim, a cada filho que nascia, era uma alegria na casa.

A caçula de Doroti já estava com 11 anos quando os filhos mais velhos lhe diziam que a casa estava precisando novamente dos movimentos de uma criança correndo e brincando por lá. E o assunto foi evoluindo, até que chegou a filha temporã. A última e, como se diz, a “raspa do tacho”, e a casa tornava a sorrir com a bebê Tatiana e o zunido de alegria e de felicidade o dia todo, a semana inteira. Eventos, fotos, aniversários, natais... todos na casa de Arlindo e Doroti.

Os filhos foram se casando e se mudando, os netos foram nascendo; mas nunca se ausentaram daquela casa. Arlindo se aposentou e Doroti também. Foi então que desejaram ter uma chácara, o local escolhido ficava próximo a Nazaré Paulista; ter onde se distrair e descansar era um outro sonho deles.

Por anos, Arlindo cuidou de seus 130 pés de café; desde a plantação, colheita, torrefação e consumo. Muito zeloso, não deixava ninguém pôr a mão nas coisas que cuidada, sempre se ouvia ele dizendo: “Não mexe, não”. Todos respeitavam e não mexiam em nada.

Sempre se vacinou contra a gripe, mas nas últimas campanhas já não queria mais. A idade foi chegando, mas ele nunca sentia nem dor de cabeça, não tomava remédio para nada; aliás, detestava quando alguém falava de remédios, nunca quis ir ao médico até chegar aos seus 80 anos. Depois, foi se mostrando mais cansado e pediu para a filha mais velha cuidar dos pés de café. Estávamos refugiados na chácara por causa da Covid-19.

Doroti viveu sem meu pai por setenta dias, mas dizia que não estava aguentando a falta dele.

Por uma razão de alma, prefiro crer que o amor dos dois os alimentou. E que eles estão bem, fizeram a parte que lhes cabia, lutaram até onde puderam, foram honrados e honraram os filhos com suas presenças nas primeiras formaturas e nas mais valiosas graduações; onde eles se orgulhavam dos filhos e das filhas, sempre presentes e lindamente trajados nos casamentos. Agora, restam a nós, as lembranças através de fotos e memórias para nos deliciar.

Arlindo nasceu em Botelhos (MG) e faleceu em Guarulhos (SP), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Arlindo, Maria das Graças Limão. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Mateus Teixeira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 20 de novembro de 2020.