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Armindo Ventura de Souza

1936 - 2021

Da janela de casa apreciava os dias, conversava e fazia encomendas.

Seu Armindo era uma espécie de “pai de todos”. Com seu costumeiro carinho, empatia e modo atencioso de tratar a todos que com ele conviviam, conquistou muitos corações, dos de perto e de pessoas que sequer conhecia. Vaidoso, ele apreciava um perfume. Quem o conhecia já sabia: se fosse para agradá-lo, bastava comprar um frasco de perfume.

Inicialmente, cabe explicar que a expressão “pai de todos”, usada pela filha Lisiane para definir o pai, não é sem propósito. Seu Armindo costumava dizer “meu filho” ou “minha filha” para se dirigir a todo mundo. Em muitos momentos, o vocativo era a senha para revelar ao ouvinte o lado acolhedor e amigo de Armindo. Um homem reservado, mas que se afeiçoava muito rapidamente às pessoas que passavam por sua vida. Com a idade e o surgimento dos cabelos brancos virou o “avô de todos”, pois era muito comum que as pessoas se referissem a ele como “Vô”.

Na vizinhança da casa em Muriaé, Minas Gerais, uma amizade foi cultivada com o Seu Lauro. Os dois eram bem próximos e queridos um do outro. Em muitos momentos, ajudavam-se mutuamente quando a vida pedia um companheiro.

Na velhice, depois da aposentadoria, a janela da casa era um de seus locais prediletos. De lá ele via o movimento da rua, cumprimentava pessoas e puxava uma boa prosa. Respeitoso das orientações científicas e sanitárias para ficar em casa e da necessidade de distanciamento durante a fase mais aguda da pandemia, ficava um bom tempo do dia na janela apreciando o que se passava lá fora. Assim, durante todo esse período, a janela virou uma espécie de “janela para o mundo”, como bem define a filha Lisiane. De lá ele se relacionava à distância com parentes e moradores da cidade que por ali passavam. Via de regra, após conversas rápidas, despedia-se dizendo: “Vai com Deus, minha filha!” Isso sem falar nos incontáveis “bom dia” e “boa tarde” que desejava e recebia de quem passasse.

Quando ficou sabendo que cloro era bom para eliminar o coronavírus do ambiente, passou a lavar regularmente a calçada da casa com o produto químico. De tal maneira e com tamanha intensidade que a limpeza do piso em frente à casa dele contrastava com a das construções ao lado. Quando começou o período das regras de distanciamento social, Seu Armindo providenciou logo um tapete com álcool para desinfetar os sapatos dos que fossem até sua casa. Quando precisava sair, sempre usava máscara e levava consigo um pouco de álcool em gel.

A interação de Seu Armindo pela janela teve um resultado surpreendente e até engraçado. É que, aos poucos, ele foi ganhando confiança em algumas pessoas que sequer conhecia. E para não deixar de lado uma de suas práticas regulares — jogar na loteria —, começou a pedir que levassem algum dinheiro e fizessem as apostas por ele na lotérica da cidade. Os números a serem marcados nos cartões eram prévia e cuidadosamente escolhidos e anotados para serem entregues aos portadores do seu palpite, que então era levado até a lotérica da pracinha. Na volta, o portador devolvia o comprovante e eventualmente algum troco restante depois da aposta.

Sobre os jogos de loteria, que eram uma espécie de hobby, um outro fato marcante. De tanto jogar, de vez em quando Seu Armindo acertava parcialmente alguns resultados. E cada prêmio modesto era comemorado como se tivesse sido o prêmio máximo! Entre os sonhos dele, que acabou não acontecendo, estava o de ganhar uma bolada na loteria e comprar um terreno para construir uma casa para cada filho.

A infância de Seu Armindo transcorreu na zona Rural de Santo Antônio do Glória, Minas Gerais. Lisiane lembra que o pai começou a trabalhar aos 5 anos. É que ele já ajudava o pai, Seu Joaquim Ventura, na lida com a roça. Seguindo o regular da idade e a prática comum às crianças, o filho de Dona Manoela devia encontrar algum jeito e algum tempo, em meio ao indispensável trabalho com o pai, para vivenciar suas traquinagens e dar asas à sua imaginação infantil. Teve tempo também para aprender a ler e escrever, do que muito se orgulhava.

O casamento com Dona Thereza aconteceu bem cedo. Os dois se conheceram ainda na roça, ele com 16 e ela com 14 anos, e deram início a uma convivência de sessenta e seis anos. Juntos tiveram dez filhos e muitos netos e bisnetos, que faziam parte da rotina da casa deles em Muriaé. O cuidado que esposo dedicava à Dona Tereza era evidente. Quando foram ficando mais velhos, qualquer resfriado dela era motivo de atenção da parte dele. Se percebesse que ela não estava bem, ligava para um dos filhos, para que viesse até a casa deles “porque ela está quietinha”. Para ajudar na recuperação e fazer um mimo, ele ia para a cozinha e preparava um saboroso mingau de fubá.

Mas voltemos àquela janela... Lisiane relembra emocionada das visitas que fazia ao pai durante a pandemia. Ele na sua janela e ela dentro do carro, juntamente com a neta Alice. Desse jeito conversavam um pouco e trocavam olhares e afetos, mantendo o recomendado distanciamento.

Na demonstração de como era afetuosa a relação dele com netos e bisnetos, vale contar um fato envolvendo a Alice. Desde quando ela era bebê, Armindo foi um avô presente e cuidadoso. Quando a menina iniciou a alimentação com papas de legumes, toda tardinha ele ligava para Lisiane dizendo que “o jantar da Alice está pronto”. Era ele quem preparava a sopa de macarrão com legumes saboreada pela netinha. Enquanto ela tomava a sopinha, Seu Armindo ficava por perto, para dar atenção e carinho a ela. Foi ele também quem ensinou Alice a gostar de ovos, uma vez que a mãe não aprecia esse alimento.

Bom dizer que Seu Armindo era um bom cozinheiro. Para sentir-se útil e agradar as pessoas, regularmente ele ia para a cozinha. Na memória culinária de Lisiane está presente o sabor do macarrão com feijão preparado por ele, que, com sabor único e inigualável, deixa saudade. A carne bovina cozida era um de seus pratos prediletos na hora do almoço.

Na dimensão profissional, Seu Armindo, que trabalhava desde os 5 anos, não deixou de estar ativo até os 80 anos. Em sua trajetória foi segurança, frentista de posto e porteiro. Graças ao seu temperamento, que facilitava o convívio com as pessoas, de todas as atividades que exerceu a que ele mais gostou foi a de porteiro: no vai e vem das pessoas, ele via bastante gente e se relacionava com quem passasse.

Um de seus planos era voltar a trabalhar assim que terminasse a pandemia. Lisiane explica que essa vontade estava associada ao desejo de continuar cuidando das pessoas da família. A habilidade de cuidar era uma de suas marcas. De um jeito ou de outro, Seu Armindo sempre encontrava uma maneira de estar presente e colaborando.

Durante boa parte do tempo em que trabalhou, para descansar e relaxar, o vascaíno gostava de assistir a jogos de futebol. Foi ele quem ensinou as regras a Lisiane. Um certo gosto da filha pelo esporte acontece em função dos ensinamentos do pai.

No dia da aposentadoria de Dona Thereza, que ocorreu uma semana antes do falecimento de Seu Armindo, houve uma celebração simples, mas repleta de beleza. Fazia calor, Lisiane comprou picolés e foi até a casa deles para que juntos saboreassem na celebração do acontecimento. Contudo, como explica a filha, Seu Armindo encarou a aposentadoria dela com uma sensação diferente. Ele dizia que “agora, com ela aposentada, ninguém precisa mais de mim”.

Católico, Seu Armindo gostava de ir à missa das quintas-feiras, às 19 horas. Ele se aprontava todo, passava seu perfume e seguia para a Matriz. Em casa, junto com Dona Thereza, ensinou os filhos a rezarem o terço. Todos se juntavam na sala para a oração. Lisiane recorda que o terço era um compromisso diário e “ai de quem não estivesse na sala” na hora do início da reza.

Antes de terminar, é hora de voltar à “janela para o mundo”. Na época da pandemia, entre os desconhecidos com quem Seu Armindo passou a se relacionar estava o “moço do supermercado”. A seu pedido, o moço comprava e lhe trazia balinhas macias — um dos prazeres de Seu Armindo. Ele adquiriu o hábito de chupar esse tipo de bala pelo cuidado com os netos e bisnetos. Criança que chegasse logo ganhava uma bala para que juntos pudessem curtir o sabor do açúcar.

Armindo segue vivo no gosto de Lisiane em ver futebol. No aroma do perfume que ele gostava de usar. No momento em que os pequenos chupam uma bala macia. E em cada amanhecer, quando a janela da casa, de onde ele tanto apreciou o passar dos dias, fica iluminada pela luz do sol.

Armindo nasceu em Santo Antônio do Glória (MG) e faleceu em Muriaé (MG), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Armindo, Lisiane C de Souza Barbosa. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 29 de agosto de 2022.