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Carlos Romualdo Nepomoceno

1941 - 2021

Ele aprendeu a dobrar suas roupas em vídeos da internet e mantinha o armário sempre organizado e impecável.

Um homem forte, alto, de costas largas, cabelos sempre cortados e penteados para trás, que começaram a ficar grisalhos somente quando ele chegou aos 78 anos. No rosto, olhos claros e um sorriso, que no conjunto da obra dava um charme só ao Carlos. Numa única palavra, como define a filha Lidiane, “bonitão”. Intenso naquilo que fazia e acreditava, Carlos viveu como queria e a partir daquilo que achava correto.

Da infância na zona rural de Piracema, próximo a sua cidade natal, Passa Tempo, em Minas Gerais, são poucas memórias. É que Carlos era muito reservado e quase não falava sobre seu passado. O que se sabe é que junto com os oito irmãos viveu do trabalho na roça até uma boa idade. Na necessidade de ajudar os pais, seu Vicente e Dona Geralda, na lida com a plantação e os animais, Carlos estudou apenas até a segunda série do então chamado curso primário.

No pouco tempo em que esteve na escola, aprendeu a ler. Contudo, apesar de ter uma letra muito bonita, o que ficava marcado em sua assinatura, Carlos tinha dificuldade para escrever. Com o advento das redes sociais e do uso de celulares, ele tinha seu jeito particular de interagir com familiares e amigos. Em vez de textos, enviava figurinhas para expressar o que queria dizer.

Depois do trabalho na roça, algum tempo passado, já morando em Itaúna, também em Minas Gerais, veio a função de operador de máquina de tecelagem. No ambiente barulhento da indústria de tecidos, ele ganhava seu sustento. Por algum tempo Carlos também trabalhou como vigia em outra empresa para complementar a renda e suportar despesas que ele mesmo inventava para si.

Quando moço, decidiu casar-se com dona Maura, com quem teve oito filhos. Selzete, Edmar, Hélio, Celeste, Neyr, Lucilene, Marcos e Lidiane, foram nascendo. Sendo um bom pai, Carlos não era do tipo carinhoso. Mas do seu jeito, estava sempre pronto para ajudar àquele filho que precisasse. Lidiane conta que quando passou a ter a própria casa, não tinha dúvidas em chamar o pai para realizar serviços de manutenção doméstica. Sempre prestativo, Carlos logo dava um jeito de arrumar o que estivesse estragado. Se alguém precisasse de algum de seus equipamentos ou objetos emprestados, ele não se opunha e emprestava de bom grado. Contudo, se a pessoa demorasse a devolver, ele não tinha nenhuma vergonha em cobrar e pedir que devolvesse logo.

Com uma vitalidade impressionante, inclusive na velhice, Carlos não tinha dificuldades com a saúde ou com o corpo. Era do tipo de idoso que descia escada correndo, que não tomava remédio para pressão, mesmo estando próximo de completar 80 anos.

Durante boa parte da vida, as pescarias eram momentos de muita satisfação para Carlos. Embora nunca tenha pegado um peixe grande para poder contar aquelas histórias de pescador, sempre que podia ia com amigos para a represa na região de Itaúna ou para a represa de Três Marias, também em Minas. Seu material de pesca era sempre guardado com todo cuidado e levado nos barcos e ranchos na expectativa de peixes.

Nas horas de descanso em sua casa, Carlos tinha suas fitas K7 como companheiras. A coleção ficava sempre arrumada dentro de uma caixa onde ele sabia exatamente onde estava cada uma delas. Com a dificuldade de encontrar aparelhos para reproduzir suas fitas, Carlos passou a comprar CDs. Entre seus artistas preferidos estava a dupla Tonico e Tinoco.

No seu jeito meio arredio, Carlos de fato não aceitava muitos convites. Certa vez Lidiane convidou para que ele almoçasse com ela. Como de costume, não aceitou. Com um complemento nada trivial, disse que aceitaria se quando ela terminasse o almoço pudesse levar um prato para que ele comesse em sua própria casa. Carlos não gostava de festa, de almoçar na casa dos filhos e nem de tirar fotos. Os poucos retratos em que ele aparece marcam momentos raros em que estava nas confraternizações familiares.

Um dos registros foi feito na casa de Lidiane. Num dos aniversários de Carlos, a filha o convidou para um café e, de forma bem diferente do que habitualmente acontecia, ele apareceu. Sem perder a oportunidade de eternizar uma das raras visitas do pai a sua casa, Lidiane propôs e ele aceitou tirar a foto. Nela, os dois aparecem sorridentes e abraçados.

Outra foto registra um encontro do dia dos pais. Lidiane levou presentes para ele. Contudo, Carlos estava tirando um cochilo, pois havia trabalhado à noite como vigilante. Um pouco mais tarde, ligou para o pai e quase sem nenhuma expectativa de que aceitasse o convite, convidou-o para juntar-se à família na chácara. Inexplicavelmente ele aceitou. De uniforme, pois trabalharia novamente na noite seguinte, Carlos foi ao encontro que de algum modo, foi uma espécie de despedida. É que pouco tempo depois ele adoeceu e não resistiu à Covid. Foi a última foto, do último encontro.

Entre as razões do comparecimento de Carlos neste evento estava o cardápio. Ele apreciava churrasco e como a carne já estava sendo assada, ele acabou decidindo ir. Entre os familiares era muito comum o comentário “o pai vai vir, então, vamos fazer um churrasco para ele”.

Saudosa, Lidiane comenta que de vez em quando dá uma vista nestas fotos. Inevitavelmente vem a sua mente a sensação de que Carlos poderia ter vivido muito mais. E se pega pensando “ah não, papai, é difícil de acreditar”.

Do seu jeito, Carlos foi sendo pai e depois avô de 11 netos. Com todos não era de dar presentes e demonstrar afetos, mas como bem disse Lidiane, “no meu olhar de adulta, papai foi pouco carinhoso, mas prestativo”.

E foi movida por esse sentimento que a filha decidiu prestar uma homenagem ao pai através desse relato. Ela acrescenta que “se ele está vendo eu não sei, mas quis prestar a homenagem e deixar o nome e um pouco da memória dele guardada de alguma forma”.

Carlos segue vivo, na casa da família que hoje é habitada pelo filho Edmar. No jeito organizado de ser da filha Lidiane.

Carlos nasceu em Passa Tempo (MG) e faleceu em Itaúna (MG), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Carlos, Lidiane Maria Nepomuceno. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 29 de agosto de 2022.