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Christalino Ferreira de Carvalho

1936 - 2020

Apaixonado por aprender, antes de vender as enciclopédias, ele se instruía por meio da leitura dos verbetes: sabia um pouco de tudo.

Filho mais velho entre nove irmãos, nasceu na pequena cidade de Claraval, interior de Minas Gerais. O nome Christalino foi lhe dado em homenagem ao seu avô português. Ele, que tinha muito orgulho de seu nome, dizia que quem o possuía era transparente e distinto.

Muito arteiro quando criança, precisou amadurecer logo cedo, para ajudar no sustento da família. Durante a infância e a adolescência se desdobrou em vários empregos: foi engraxate, mesmo não possuindo calçados, locutor e barbeiro. Quando fez dezoito anos decidiu "ganhar a vida" em São Paulo. Ele queria ter melhores oportunidades, pois, ao longo da vida não tinha conseguido estudar, seu grande sonho. Deixou, porém, a namorada Sarah Maria, a quem prometeu logo buscar.

Já em São Paulo, decidido a ter melhores condições de vida, fez supletivo, pois, havia estudado somente até o quarto ano primário, começou a estudar inglês e aprendeu o idioma com muita facilidade. Logo, conseguiu emprego como carteiro nos Correios. A partir dessa oportunidade, começou a observar como eram operados os telégrafos, isso fez com que aprendesse rapidamente o ofício; então passou a ser telegrafista também nos Correios. Tinha uma mente muito aberta para aprender e para evoluir profissionalmente, além de uma facilidade para captar as coisas ao seu redor. Então, quando surgiu uma vaga como telegrafista, ele pediu uma oportunidade ao seu chefe, que inicialmente relutou, mas acabou cedendo. Ter sido telegrafista foi um de seus maiores orgulhos na vida, sabia tudo sobre telégrafos.

Quando Sarah Maria, um pouco mais nova que ele, completou dezenove anos, Christalino voltou à Claraval para se casar com a amada. Os dois sempre foram o grande amor da vida um do outro. Tanto que permaneceram juntos por sessenta anos. A vida deles foi formar e cuidar de uma família. Como todo casal, tinham algumas "briguinhas", mas não se largavam.

Após o casamento, partiram rumo a São Paulo, onde viveram por dezesseis anos e tiveram nove filhos. Para cuidar dessa numerosa família, Christalino além de telegrafista, foi vendedor de enciclopédias, batendo de porta em porta. Nesse período, ele aproveitava para ler o que tinha nas enciclopédias. Como possuía uma excelente memória, sabia tudo sobre conhecimentos gerais e história, era capaz de palestrar sobre os mais variados assuntos com riqueza de detalhes. Fazia contas sem utilizar calculadora.

Christalino via na educação, uma possibilidade de transformação, de oportunidades, fazendo questão que seus filhos estudassem. Por ser o filho mais velho, ajudou muito o crescimento de seus irmãos para que tivessem a possibilidade de fazer melhores escolhas vida. Gostava muito de saber sobre tudo. Aos domingos, era sagrado dedicar as manhãs para a leitura de jornais. Ninguém podia mexer no jornal antes que ele o folheasse. Tomava café, sentava na cadeira e ia ler o jornal, assim passava a manhã toda. Os filhos sabiam que se piscasse muito, é porque ele estava nervoso.

Como pai, nunca deixou que faltasse nada para a família. Os filhos sentiam muito sua falta, mas sabiam que ele precisava cumprir seu papel como pai. Entretanto, a filha Sarah se recorda de uma lembrança muito especial: "a nossa casa tinha um quintal bem grande quando ainda morávamos em São Paulo. Então, ele fez uma arraia – pipa – para cada um dos filhos. Ele soltava a arraia e nós corríamos, explodindo de felicidade".

No final de 1976, teve a oportunidade de ser representante comercial de uma empresa na cidade de Franca, São Paulo, cidade próxima a Claraval. Trabalhou muitos anos como vendedor. Vendia equipamentos, fornos para montagem de supermercados e padarias. Apesar de nunca ter feito engenharia, era ele quem desenhava as plantas, o layout da disposição dos equipamentos dentro do estabelecimento. A vida fez Christalino passar por muitos atropelos. Por ter sofrido inúmeras privações durante a infância, sempre gostou muito de fartura à mesa. Então, todas as vezes que fazia vendas em suas viagens como representante comercial, ele voltava para casa com o carro lotado de alimentos. Sua felicidade era fazer uma festa e servir bem as pessoas.

Quando a companhia o dispensou pela idade, decidiu abrir sua própria empresa para não parar de trabalhar. Nessa época, como sempre buscava todo o tempo coisas novas para aprender, decidiu aprender sobre computadores. Dizia que aprendeu a exercer todas as profissões com a vida, correndo atrás para dar sempre o seu melhor.

Homem de fé inabalável, era cristão e muito ligado à Igreja. Era membro da Congregação Cristã do Brasil, sendo por mais de quarenta anos, diácono. Vivia incansavelmente disposto a servir os mais necessitados. Assim, quando chegava das viagens, ia logo vestindo seu terno e gravata e se perfumando para ir à Igreja, sendo muito pontual em seus compromissos. Para ele, horário era horário. Deixou um legado de muita integridade e caráter juntamente com a confiança em Deus. Dizia que o maior bem que alguém tem neste mundo é a sua honra.

Por causa da religião, Christalino não comemorava Natal, mas pelo fato de seu aniversário ser em vinte e seis de dezembro, nunca faltava festa nessa data, era o dia inteiro de festas. Então, ele chamava todos os seus familiares para um churrasco ou um almoço de aniversário. As festas eram sempre regadas a muita fartura. Ele gostava especialmente de uma boa bacalhoada, servida com bastante azeite. Sua felicidade era juntar todas as pessoas queridas para dar risadas e contar histórias para relembrar o passado. Nesses eventos, sempre contava histórias do seu trabalho como engraxate e que aprendeu a cortar cabelos ainda em Claraval.

Gostava também de comer lentilhas com arroz, prato típico feito pelas famílias sírias de Claraval, e suas frutas preferidas eram jaca e jabuticaba. Entretanto, sua paixão eram mesmo os doces, especialmente pudim - sua sobremesa favorita, ele brincava dizendo "É pro Dim ou pra mim?". Gostava demais também de um doce chamado "Chico Balanceado" – sobremesa bastante popular no Rio Grande do Sul, feito a base de creme de confeiteiro, suspiro e calda -, que a sogra de sua filha Sarah preparava. "Quando ele via minha sogra, já ia logo perguntando 'Dona Angelina, cadê o Chico Balanceado?', só que na verdade, ela se chamava Santina. Então, eu dizia que ela ficaria brava se ele trocasse o nome dela mais uma vez. Meu pai gargalhava alto e brincava 'Como assim se eu acabei de promovê-la de santa a anjo?'", recorda a filha Sarah.

Tinha o costume de sempre colocar apelidos em todas as pessoas que conhecia e fazer rimas com as palavras. Com os 21 netos não era diferente: amava fazer brincadeiras e piadas com todos os netos. Cada neto tinha um apelido que fazia rima com o seu nome. Dava altas gargalhadas, que podiam ser ouvidas à distância. Nunca esquecia que a neta mais velha, Taciana, nasceu no dia do telegrafista. Tinha um orgulho imenso desse fato. Também foi o contente bisavó de quatro crianças. Christalino era também muito amado, importante e querido pelos sobrinhos, que o chamavam de "Tio Carvalhinho".

Nos últimos anos, devido ao Alzheimer, vinha deixando que sua criança interior desse o ar da graça. Torcedor do São Paulo, estava inclusive acompanhando mais os jogos do seu time do coração.

A vida de Christalino sempre foi de muito trabalho para a conquista de bens materiais e para que os filhos tivessem a oportunidade de estudar e se formar. Cada conquista para ele era motivo de muito orgulho e comemoração: casa, carros e filhos formados. Deixou o legado de que nunca é tarde para se reinventar e de que vale a pena enfrentar com dignidade todos os obstáculos da vida com esperança em dias melhores. Lutador, nunca desanimava, pois confiava absolutamente em Deus e na Providência Divina. Exemplo de integridade, foi uma grande referência como ser humano e de como servir ao Criador.

Christalino nasceu em Claraval (MG) e faleceu em Franca (SP), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Christalino, Sarah Carvalho. Este tributo foi apurado por Emily Bem e Andressa Vieira, editado por Andressa Vieira, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 22 de dezembro de 2021.