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Cirene Guilhermina Pires

1952 - 2020

"Vou falar que está tudo bem, e vai ficar tudo bem!", dizia Nena.

Mulher, enfermeira, filha, mãe, avó, sogra, irmã, amiga. Com maestria, Nena cumpriu todos esses papéis na vida.

Quando era enfermeira, virava noites em plantões para oferecer o melhor aos seus pais e a sua única filha, a Sarah. Ao longo de seus 67 anos, ela não só tinha o amor de sua família, como também tocou a vida de muitas pessoas e colecionou amigos. Mesmo quem não a conhecia, logo se apaixonava só de ouvir o seu "oi, tudo bem?" ao telefone.

Nena não media esforços para ajudar quem pudesse. Na época em que trabalhou num banco, ajudou muitos conhecidos a conseguirem emprego. Nos tempos de enfermagem, Nena também cultivou muitas amizades. Por conhecer muita gente no meio médico, ela ajudou amigos e parentes que precisavam de consulta a um menor custo.

Nos últimos anos ela pelejou com alguns problemas de saúde... Já andava com certa dificuldade por causa de um problema no joelho. Também precisava ficar atenta aos índices de glicemia e pressão arterial. Ela, que cuidou de tantos pacientes, contava agora com a ajuda de uma cuidadora. Divida o lar com um irmão, que também lhe fazia companhia.

A relação com sua filha Sarah era marcada por muito amor e cumplicidade. Sarah é casada com Cleber, tiveram dois filhos: Isaac e Daniel. Aos finais de semana, Sarah ia cuidar de Nena. Durante a semana, elas conversavam todos os dias por telefone, sempre às 21h30. Se Sarah por algum motivo não ligasse, a Nena logo ligava pra saber o porquê da demora. Quando Sarah contava para a mãe que estava chateada, Nena sempre dizia: "Vou falar que está tudo bem, e vai ficar tudo bem!"

Ela chamava os netos de "meus meninos". Era daquele tipo de vó que a gente guarda no lugar mais especial do coração. Os netos já eram bem crescidinhos, mas isso não importava para Nena. Não faltava presente no Dia das Crianças e nem ovo de chocolate na Páscoa. Afinal, eram seus meninos!

A relação com o marido de sua filha, o Cleber, não era o típico relacionamento entre sogra e genro. Era verdadeiramente uma relação entre mãe e filho. Aliás, foi o Cleber quem deu o primeiro smartphone para a Nena. Inserida nesta nova era tecnológica, Nena simplesmente ficou maravilhada com a possibilidade de conversar e ver parentes que moravam em Rondônia, ali, pela tela do celular.

Os dias de Nena também eram marcados por uma rígida rotina de cuidados com sua saúde, entre medições de taxa de glicose, pressão arterial e os horários dos remédios. Cleber, o genro-filho, foi também quem programou os alarmes naquele mesmo smartphone da Nena, para que ela pudesse seguir corretamente as receitas médicas.

Ela também gostava de tirar um cochilo sempre que podia, dizendo que era para compensar tantas noites que ficou sem dormir quando era enfermeira. Nena também adorava preencher seus dias assistindo pela TV a programas de sua igreja e também aos famosos programas policiais, nutrindo até uma simpatia pelos apresentadores. Coisa boa também era quando a vizinha colocava pra tocar as músicas antigas do rei Roberto. Nena fazia coro!

A única extravagância que Nena fez na vida foi pegar o dinheiro do acerto de quando saiu do banco e viajar para a praia. Ela, que adorava presentear os outros, permitiu-se esse único luxo. E, claro, viveu esse momento especial ao lado de pessoas queridas, assumindo a conta do bar para que todos ficassem felizes.

Um dia, Nena começou a tossir muito, e isso logo acendeu o alerta de Sarah. Seu tio, que vivia com Nena, já estava internado, e o diagnóstico era de covid-19. Antes de Nena ser internada, ela se despediu de seus meninos. Sarah disse à mãe que não se preocupasse, que tudo ia ficar bem, as mesmas palavras que Nena sempre dizia pra ela.

E Nena ficou bem. De um jeito que nosso entendimento talvez não alcance de imediato. As dores, as medições constantes da pressão e da glicemia, o rigor dos horários para as medicações, a tosse, tudo isso ficou para trás. Nena agora só sente amor, todo o amor que doou e recebeu em sua vida, porque isso não morre. Ela agora é só amor. Amor eterno. E apesar da saudade que a Nena deixa por aqui, ela deve estar dizendo, de onde quer que esteja: "Vai ficar tudo bem!"

Cirene nasceu em Galiléia (MG) e faleceu em Betim (MG), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Cirene, Sarah Pires Braga. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Renata Ferreira Ornelas, revisado por Monelise Vilela Pando e moderado por Rayane Urani em 2 de agosto de 2020.