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Elisabete dos Santos da Silva

1970 - 2020

A professora que amava se expressar com dedos em “V” e fez, da mediação em ambiente escolar, um gesto criador.

O educador Paulo Freire e o escritor Machado de Assis foram dois faróis na formação humanista de "Beta", como os familiares e amigos a chamavam. Do romancista, tomou o caminho para cursar Letras. Foi a primeira, dentre sete irmãos, a concluir uma graduação. Do professor, ancorou o pensamento crítico, que a levou a abraçar o mesmo ofício.

Deu aulas de português, inglês e geografia em duas escolas estaduais de Mogi das Cruzes. “Ela se preocupava muito em saber porquê determinados alunos eram considerados um problema pela instituição”, diz o companheiro Ataliba Silva de Toledo Júnior, acerca do trabalho dela como mediadora escolar e comunitária. “Contornava conflitos, queria que a educação fosse de fato mais igualitária e inclusiva”. Assim, procedeu por 13 anos em sala de aula. Triangulou com estudantes, com pais ou responsáveis e com o sistema de ensino.

Essa capacidade de empatia veio do berço. Seus pais, João Miguel e Izaltina, nasceram em um povoado da cidade de Campo Formoso, no centro-oeste baiano. Uma vez casados, migraram para Mogi, ciosos de que os filhos tivessem mais oportunidade que eles.

A sobrinha Carolina recorda-se do quanto Beta sonhava com o curso superior e do quanto ficou feliz ao concretizá-lo. Não contente, fez mais duas licenciaturas, em Geografia e Pedagogia. “Nunca quis ter filhos, mas teve os irmãos e os sobrinhos para cuidar. Sempre nos aconselhando coisas boas, a estudar, a trabalhar e a termos caráter como seres humanos”, afirma. Era um pilar e estendia a noção do outro às ações voluntárias como a de plantonista do Centro de Valorização da Vida, o CVV, e colaboradora na campanha de castração de cães, no bairro.

Sem jamais se pedirem em casamento, o biomédico Ataliba e a professora passaram juntos 20 anos. Ele seguiu morando na Mooca paulistana e ela em Mogi, cidade universitária onde se conheceram. O casal adorava viajar, de preferência para ver o pôr-do-sol em São Tomé das Letras (MG).

Beta fazia amizades com facilidade. Gostava de ir ao teatro, ao cinema, à tradicional Festa do Divino e ao Baratotal, espaço mogiano vocacionado para a MPB. “Na última conversa com ela, como sempre muito vaidosa, exibia o seu novo visual de tranças, que tinha acabado de fazer”, lembra o garçom Luiz Fernando Andrade. Tampouco perdia o tributo a Raul Seixas, no Theatro Vasques. “Dançava com energia e alegria na frente do palco”, testemunha o músico Vital de Souza, da banda Ruínas.

Mesmo após diagnóstico de neuropatia e de artrite reumatoide, nos últimos anos, não deixava de atender aos convites para festas. “Lá estava ela dançando samba com o Ataliba”, conta a amiga e oficial de serviços administrativos, Eloiza Mendes.

Na Virada Cultural de São Paulo, em 2018, nem as dores impediram-na de curtir. “Ela se jogou nos shows, nos divertimos muito”, diz a amiga e técnica de laboratório, Luciana Araújo. “Foi a pessoa mais tolerante que eu conheci”, completa.

Ao organizar a última festa de aniversário, em outubro de 2019, a educadora não esperava que o salão lotasse. Mais uma vez mostrou-se generosa nos sorrisos largos, combinados à outra característica pessoal: o gesto de paz e amor. “Todos que convivemos registramos uma foto com ela assim, com os dedos em ‘V’. Ela ensinou que, até os momentos mais triviais, com as pessoas que amamos, merecem ser valorizados, comemorados, fotografados e guardados para refrescar a nossa alma quando a memória falhar”, relata a amiga e jornalista Vânia Alves. “Beta era uma mulher sábia.”

Elisabete nasceu em Mogi das Cruzes (SP) e faleceu em Mogi das Cruzes (SP), aos 49 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo companheiro de Elisabete, Ataliba Silva de Toledo Júnior. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Valmir Santos, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 25 de junho de 2020.