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Fernando Cesar Farias Bezerra Filho

1983 - 2021

Cozinhava como quem compõe uma música: havia harmonia entre os ingredientes, e o vinho era escolhido com maestria.

A afeição de Fernando pelos animais teve início logo na infância: amava brincar com gatos e cachorros. Foi uma criança curiosa, apaixonada por sorvete e muito apegada às revistinhas que ganhou da avó materna - essas preciosidades foram muito bem guardadas até a vida adulta, diga-se de passagem. Desde pequeno ele usava as ruas de Fortaleza como palco para as suas brincadeiras de corrida e era comum ser visto acompanhado das irmãs, Stephania e Thais, que tinham um cantinho especial no coração dele. Ficava radiante quando se encontrava com os pais, Larisa e Fernando, irmãs e com a afilhada e sobrinho, Alice e Lucas, e fazia questão de cuidar de todos com muito carinho e amor. Não faltavam assuntos quando todos se reuniam: sempre tinham algo para conversar.

Fernando tinha originalidade e presença em seu jeito de ser. Foi único em muitos sentidos, e foi luz para todos aqueles que estavam à sua volta. Suzy, companheira de Fernando, comenta que “ele era uma pessoa sensível à vida, à natureza, aos animais… não tinha nenhum animal que o Fernando visse sofrer que ele não se mobilizasse para ajudar de alguma forma. A gente parou muitas e muitas vezes viajando por aí para alimentar o bichinho de rua. Ficava muito triste se chegasse no final do dia e ele visse um animal sofrendo e não conseguisse fazer alguma coisa por ele”. As suas características mais marcantes envolviam ética, sensibilidade, humildade e inteligência, além de ele ter sido uma pessoa capaz de conversar sobre absolutamente tudo o que se pode imaginar.

Era apaixonado por música e, por isso, tinha discos preciosos - e muito bem cuidados e preservados - em casa. Também gostava de se divertir com games, livros, filmes da Marvel, DC, Star Wars, Game of Thrones e era presença constante nas bilheterias do cinema. A culinária também fez parte da vida de Fernando: ele amava cozinhar, apreciava todo o processo: desde a compra dos ingredientes até a montagem final do prato. A ida ao supermercado era um momento especial para ele, pois fazia questão de escolher cada alimento com muito cuidado e exatidão. Fazia carnes, saladas e molhos deliciosos, mas, por ser especialista em massas, a melhor refeição que ele preparava era, com certeza, o espaguete à carbonara. Os diferentes tipos de vinho também participavam dos pratos, já que Fernando gostava de harmonizar a bebida com as massas que cozinhava.

Seus amigos tinham gostos muito parecidos com os dele e, por isso, gostavam de sair juntos para o cinema. Rachel, uma de suas amigas, diz que ele foi um “presente da nossa geração: uma pessoa serena e lírica num mundo veloz”.

No trabalho, Fernando também tinha contato com pessoas queridas. Ele se formou em direito e atuou, durante grande parte de sua vida, como servidor no tribunal de justiça. Estava sempre disponível para ajudar seus colegas de trabalho e, mesmo quando não sabia de algo, se disponibilizava, com prazer, para ler sobre o assunto. Foi um ótimo profissional: tratava a todos com respeito e afeição, além de ter agido com ética durante todo o caminho como servidor.

Teve o privilégio de amar e ser amado: passou quatro anos ao lado de Suzy, sua companheira. Os dois chamaram a atenção um do outro desde a primeira troca de olhares e, depois disso, não se separaram mais. Tudo foi especial para ambos: a primeira conversa - que durou horas e horas -, o primeiro encontro, a primeira viagem, o primeiro beijo. O casal sentiu uma forte conexão logo no início da relação e, a partir daí, perceberam que foram feitos para ficarem unidos. Os encontros também envolviam alguns amigos em comum e, muitas vezes, o casal estava tão entretido com seus diálogos que não viam os outros irem para casa.

Fernando e Suzy viajavam sempre que podiam, e a viagem mais marcante e especial dos dois foi para o Uruguai, que incluiu, também, a família dele. Lá eles fizeram passeios e aproveitaram tudo o que o lugar oferecia, mas o que mais gostaram de fazer foi acompanhar o pôr do sol. Todos os dias o casal podia ser visto fotografando o horizonte e, ao fim do passeio, tinham um tesouro pessoal: um mapa dos pores do sol do Uruguai.

Foi durante essa viagem incrível que decidiram que, quando voltassem para Parnaíba, iriam morar juntos. O processo de mudança para a casa envolveu preparar o espaço para a chegada de todos os seus bichinhos: duas gatinhas e três cachorros. Obama, Felícia, Chardonnay, Farofa e Arabela no início não se davam bem, mas Fernando não descansou até que todos estivessem seguros e confortáveis no novo lar. A chegada do casamento também deixou o casal radiante, e Fernando fez questão de participar da escolha de cada detalhe.

Fernando viveu momentos únicos em sua vida e iluminou todos os lugares por onde passava com o seu jeito singular de ser.

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Carta de Suzy para Fernando, o amor de sua vida:

"Me recuso a usar preto e branco nas nossas fotos. Faço questão que o mundo todo possa ver todas as cores que te pertencem e que incidiam sobre o nosso amor. Fernando me afeta profundamente.

E não dá pra falar dele no passado porque tudo sobre ele é, está presente e reverbera majestosamente em mim.
Tenho ouvido todos os nossos discos, buscando em cada letra de rock, MPB ou metal, palavras que acomodem perfeitamente a saudade desse amor. Não acho. Todas elas falam de amores alheios. Nenhum é ou será como o nosso foi e é.

Não tem mais as suas boas e inteligentes piadas por aqui. Os filmes estão todos cheios de ruídos e pixelados.
A nitidez e a qualidade da imagem e do som estavam no seu prazer em apreciar; e em te ter como companhia.
Tenho lido muito sobre o luto, na tentativa desesperada de achar palavras que deem conta de como tudo está aqui e agora. Fernando é muito. E não cabe nessas palavras que já foram escritas.

É urgente escrever algo novo sobre você. Algo inteligente, refinado, sensível e sobretudo engraçado. Tem que ter um toque de humor inteligente. Tem que ser regado a bons vinhos e tem que ser produzido por aparelhos de alta tecnologia e desempenho. Suspeito que ainda assim não chegue perto de dar conta. Fernando é muito. Muito. Muito. Essa é a única forma possível de compreender a dimensão do meu amor por ele. Como não amar tanto alguém que é tanto assim? Um amigo disse que o preço do amor é o luto.

E por aqui, esse luto tem muita saudade! Mas a alegria e o privilégio de poder ter tido você na minha vida, amansam. Ou tentam.

Por aqui também há revolta. Muita. De tudo o que poderia ser e não foi. Do descaso, da negligência, do caos ético e político que a gente atravessa. Minha luta é por você e pelas outras mais de seiscentas mil pessoas queridas de alguém. Sobretudo por você.

Não vou esquecer e nem vou deixar quem te ama esquecer também. Irei às ruas me manifestar. E é por você.
Não é só mais um texto sobre luto, é sobre luta."

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Lembrança afetiva de Thais Martins sobre a infância com seu amado irmão;

Quando crianças, morávamos em uma rua pequena, de um quarteirão apenas, em uma casa perto da praia. Todo dia, perto das 18h, acompanhávamos a vovó até a padaria, que ficava em uma avenida alguns quarteirões acima.

Subíamos a ladeirinha da nossa rua, que desembocava em um simpático armarinho. Essa mesma ladeira, inclusive, foi onde ele e Steph aprenderam a andar de bicicleta. E eu, que não sabia, brincava correndo atrás deles.

Pois bem, subíamos a ladeira, então era pegar a esquerda, depois direita, subir dois quarteirões, outra direita e pronto: já estávamos na padaria. Enquanto ela comprava o pão, nós ficávamos na banca em frente, maravilhados com tantas opções de leitura. Mas no fim era sempre o mesmo: eu levava revistinhas da Turma da Mônica e ele, de super-heróis.

Fernando nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 38 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela amiga e pela esposa de Fernando, Yamila L. G. de Sousa e Suzy Tiberly R. de S. Araujo. Este tributo foi apurado por Mariana Ferraz, editado por Mariana Ferraz, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 1 de fevereiro de 2022.