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Franci Narciza de Souza Costa

1947 - 2020

Ela despertava bem cedo, e com sua cantoria em agradecimento pela vida, também acordava todos da casa.

Franci foi uma esposa respeitosa, uma mãe atenta e amiga de fé de muitos. Deixou a cidade de Sobral (CE) e foi viver em Brasília com Francisco, um mestre de obras, à procura de emprego. Na bagagem, e para toda a vida, levou sua rede de balanço.

Do seu relacionamento com Francisco, vieram oito filhos, vinte e três netos e dois bisnetos. Até o falecimento do esposo, Franci sempre manteve uma atitude de parceria nos desafios enfrentados pelo marido. Nos últimos anos de vida de seu Francisco, porém, fizeram a escolha de voltarem a morar sozinhos. E foi somente depois de ficar sem o companheiro que Dona Chica, como era carinhosamente chamada por parentes, vizinhos e amigos da igreja, retornou à sua cidade natal para rever parentes.

A filha Jozilene, que morou com a mãe até os 21 anos, tem boas lembranças dessa convivência. Quando Franci precisava se ausentar, a filha, que na época não trabalhava e ficava muito em casa, sentia muita sua falta. Quando já adulta, Jozinha, como era carinhosamente chamada pela mãe, saia de Goiânia, em Goiênia para visitá-la em Brasília, no Distrito Federal. Dona Franci sempre vinha abrir a porta para recebê-la, e num dos quartos da casa, a cama já estava pronta, com roupa de cama limpinha e cheirosa.

Dona Chica levantava bem cedo e tinha o hábito de cantar, sem preocupação com a hora. Ela soltava a voz com seus cânticos religiosos, acordando todos da casa. Jozilene conta que em muitos momentos ficava mais um pouco na cama ouvindo a cantoria da mãe. O canto era sinal de agradecimento, uma vez que Franci era muito grata por tudo que teve na vida.

"Ela sempre se dizia agradecida pela saúde de todos, pelo trabalho de Francisco e pelos filhos e netos que foram nascendo", conta a filha. Os netos Thiago, Stephanie e Daiane foram criados pela avó. E a relação foi tão intensa que Thiago a chamava de mãe. Franci costumava dizer que netos são filhos duas vezes, e nunca recusou-se a cuidar deles.

Muito humilde, para Dona Chica, tudo estava bom. Nunca se preocupou com luxo, e foi na simplicidade que levou a vida. Se soubesse que alguém precisava de ajuda, não media esforços para ajudar. Se tivesse dois sacos de feijão em casa, dava um de bom grado, mesmo sabendo que poderia fazer falta nos suprimentos da semana.

Quando ganhava algum presente, parecia uma criança, de tanta felicidade. Todos sabiam que ela apreciava muito perfumes e vestidos. Assim, a cada data marcante, era presenteada e sorria abertamente. Um desses presentes merece destaque: um leque que a filha Maria Marta trouxe da Espanha. A filha, que mora no país da península Ibérica, veio visitar a família e trouxe o mimo na bagagem. Ao recebê-lo, Franci ficou encantada com a beleza do leque. Desde então, nos dias de intenso calor no planalto central do Brasil, sempre abanava o leque para se refrescar um pouco.

Uma das coisas das quais Franci não gostava era fofoca. Quando alguma amiga ou vizinha vinha falar mal de outra pessoa com ela, ficava irritada. Não dizia nada, só respondia “hum, hum”, para não transparecer desinteresse. Entre os conselhos que sempre dava aos filhos estava o de que “quando alguém vier falar mal dos outros, você não fale nada, viu. Pode até escutar, mas não fale nada”.

Franci nunca trabalhou fora de casa, mas costurava para complementar o orçamento doméstico. Da máquina de costura dela saíram muitas roupas para os filhos. Ela comprava o tecido e cuidadosamente produzia cada peça. Eram vestidos, colchas e lingeries. Sem contar os reparos em roupas que fazia com muita propriedade e as incontáveis bainhas que fazia para seus clientes.

A reforma de bonecas era outra atividade associada à costura. Dona Chica gostava muito de bonecas e tinha várias delas. Quando a roupa de alguma ficava surrada, ela aproveitava retalhos de tecidos para fazer novas. Outras vezes, refazia o corpo de bonecas de pano, dessas que têm uma cabeça feita de material plástico e o restante do corpo com enchimento macio.

Como precisava costurar, cuidar da casa e dos filhos, Franci desenvolveu suas estratégias. Ela não gostava que a garotada ficasse o tempo todo brincando na rua com os amigos da vizinhança. E para garantir o cumprimento do combinado, nos momentos em que determinava que ficassem em casa, tirava a chave da porta e deixava em cima da sua máquina de costura. Era assim que ela conseguia se concentrar no trabalho, para depois poder assistir a suas novelas.

Ela também não tolerava brigas e discussões entre os filhos. Quando começava alguma confusão, ela logo se movimentava e dava um jeito de acabar com aquilo.

Na hora das refeições, a mãe atenta e carinhosa, destinava os melhores pedaços de carne para os filhos. Para sobremesa, apesar da diabetes, ela não abria mão de comer um doce. A goiabada em barra era um de seus preferidos, e ela não deixava faltar na despensa. Apreciava também frutas como melão, manga e jaca. Jozilene conta que quando ela via um pé de manga carregado, pegava logo uma sacola e colhia muitas frutas.

De sua terra natal, Franci levou alguns hábitos para toda a vida. Um deles era o de servir tapioca com manteiga no café da manhã. Outro era o de se balançar na rede. Quando mais nova, ela só dormia em rede. Na casa de Brasília, sempre havia uma rede armada no meio do quarto. Ali, ela sentava para descansar, para se balançar, e para conversar com os filhos. De vez em quando, tirava boas sonecas na rede.

Dona Chica segue viva na colcha de retalhos guardada carinhosa e cuidadosamente pela filha Jozilene e na lembrança das cantorias ao amanhecer que ecoam pela casa.

Franci nasceu em Sobral (CE) e faleceu em Brasília (DF), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Franci, Jozilene de Souza costa Santana. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Elias Lascoski e Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 16 de novembro de 2021.