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Francisco Carlos Olendzki Reis

1952 - 2021

Descendente de imigrantes, ele gostava de dançar sorrindo.

A história de Francisco traz em si um pouco da imigração de europeus para o Brasil em diversas épocas. Traz também parte da miscigenação ocorrida nos pampas gaúchos com o encontro entre famílias de diversas culturas e nacionalidades.

O pai, seu Francisco da Silva Reis, de origem portuguesa, deu a ele o sobrenome Reis. Como conta a filha Márcia, os antepassados de seu Francisco são da linhagem de Joaquim Silvério dos Reis, um proprietário de minas de ouro na região onde hoje fica o estado de Minas Gerais e um dos responsáveis pela delação dos inconfidentes mineiros. Por sua vez, Joaquim Fagundes dos Reis, o bisavô de Francisco, foi um dos fundadores da cidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em agosto de 1857.

Da mãe, dona Eda Olendzki Reis, herdou o sobrenome de origem polonesa. Os antepassados dela precisaram deixar a Europa em função das guerras que aconteciam naquele continente e vieram tentar a vida no Brasil.

Nascido em Bagé, no Rio Grande do Sul, Francisco foi para a capital gaúcha, Porto Alegre, com sua família ainda criança. Interessante que os pais dele residiam em Pelotas, mas em função de uma viagem, Francisco acabou nascendo em outra localidade. Com seu jeito mais reservado de ser, ele falava com carinho dos tempos de menino. No olhar da filha Márcia ele gostava de lembrar desse tempo, “mas acho que gravou poucas peripécias, como andar de bonde até o final da linha sem que a minha avó soubesse”. De um modo geral, é possível dizer que ele teve uma infância bem livre em Porto Alegre, juntamente com a irmã Eda, uma vez que tanto o pai quanto a mãe trabalhavam. A outra irmã, Cíntia, só chegou quando ele era adulto e já pensava em se casar.

Ainda na infância, ele foi coroinha na Catedral Metropolitana de Porto Alegre. Nos poucos comentários que fazia dessa época, contava com um certo orgulho que conhecia bem o interior da catedral. Na meninice, Francisco tinha como um dos espaços de brincar os pátios internos do templo, na parte reservada à residência dos padres.

Os estudos, desde o então chamado ensino primário, aconteceram no Colégio Nossa Senhora das Dores. Tímido, ele era um bom aluno, estudioso e inteligente. É desta época o florescer de uma de suas melhores amizades. Carmelo, cresceu junto com Francisco e juntos viveram as diversas fases da vida, da infância até a maturidade.

Foi ainda bem novo que Francisco começou a se relacionar com a esposa Tânia; na época ele estava com doze anos. E o relacionamento deles, mais uma vez marcou o encontro de culturas de países europeus diferentes. Nas férias e feriados prolongados, as famílias de origem polonesa e italiana se encontravam regularmente na praia de Santa Terezinha, no litoral gaúcho. E à medida que crescia, o olhar de Francisco sobre Tânia foi sendo modificado pelo tempo. De companheira das brincadeiras no mar, tornou-se namorada e depois parceira durante boa parte da vida. O casamento aconteceu quando os dois eram novos, um com 24 e o outro com 25 anos.

Já adulto, certa vez Francisco fez uma viagem até Pelotas, no Rio Grande do Sul, com a intenção de mostrar à Tânia e aos filhos já adultos, a cidade onde viveu e a casa onde seus pais moravam. Contudo, este desejo acabou não se concretizando, pois o imóvel não foi localizado. O passeio foi oportunidade para que os familiares pudessem saborear os doces muito saborosos e famosos feitos naquela cidade.

Na juventude, escolheu o curso de engenheiro eletricista, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na sequência enveredou pelo ramo do empreendedorismo e chegou a ter 6 empresas ligadas ao ramo de manutenção, venda e aluguel de ferramentas elétricas. Como engenheiro da Companhia de Energia do Rio Grande do Sul, contribuiu bastante para a preservação da arquitetura de espaços do centro da capital gaúcha através de projetos de rede subterrânea de iluminação.

No mundo do trabalho, o menino e jovem tímido, que vez por outra tropeçava nas palavras, aos poucos tornou-se uma pessoa confiante, que falava e expunha muito bem suas ideias. Em suas empresas batia metas de vendas e ganhava prêmios, chegando a ser contemplado com viagens para a Europa em decorrência disso.

Uma outra característica de Francisco era o prazer em ajudar as pessoas. Ele era rotariano, maçon. Através do Rotary atuava como diretor de um asilo de Porto Alegre. Na Maçonaria, além de fazer muitos amigos, era uma espécie de conselheiro dos jovens que pretendiam iniciar seus empreendimentos. A partir da experiência na gestão de suas próprias empresas, quando alguém o procurava para conversar, Francisco largava tudo o que estivesse fazendo e concentrado ouvia. Quando considerava pertinente, dava opiniões e conselhos.

Mesmo em meio a muito trabalho e atuações filantrópicas, Francisco não descuidava da convivência familiar. Márcia conta que ele saia de casa bem cedo, mas fazia questão de almoçar em família. Depois ela e o irmão, também chamado Francisco, iam de carro com o pai até a escola. Na juventude dos dois, gostava de leva-los até os locais das festas. E nestes deslocamentos pela cidade, aproveitava para conversar sobre o transcorrer da vida deles. Por meio de seus conselhos era uma espécie de amigo dos filhos.

O universo culinário também revela a mistura de culturas expressa no nome de Francisco. Excelente cozinheiro, usava o espaço da cozinha como mais uma maneira de demonstrar seu amor. O universo de receitas era variado, com comidas típicas de diversos países que ganhavam sabor em pratos, sempre preparados com tempero impecável. Márcia lembra com saudade do sabor do bacalhau à Milano, do arroz de carreteiro, do molho e das pizzas dele.

Nas festas de final de ano, pai e filha iam para a cozinha preparar a ceia. Enquanto ajudava Francisco, Márcia foi se apropriando do modo de temperar e preparar os alimentos e com um sorriso diz que “peguei todas as receitas dele”.
Nos finais de semana, entre os programas prediletos de Francisco, estava o de sair para conhecer novos restaurantes. Ele procurava principalmente os de comidas típicas de outros países. Se gostasse, comia sem exageros. Se provasse e não apreciasse o prato, escolhia não comer a iguaria do cardápio.

No dia a dia, para se divertir e relaxar, ele gostava de assistir a filmes de época e ler. Márcia destaca que “ele lia muito e muito rápido”. Ao lado, ficava o cãozinho de estimação da família e companheiro de Francisco “Guri de Caçapava”. O Nome foi dado pela nora Geisa, que trouxe o animal de Caçapava, sua cidade natal. Por outro lado, quando Guri estava no colo de Tânia, ficava todo enciumado porquê Francisco se aproximava.

Ele também amava dançar em festas e Márcia gostava muito de bailar com o pai. A filha recupera uma linda memória de que no compasso das músicas, Francisco dançava rindo e os dois bailavam em momentos de pura felicidade. Vale dizer de uma característica marcante do sorriso de Francisco. Em seu rosto que misturava traços de diversas origens, o ato de sorrir sinalizava uma certa serenidade.

Na fase adulta, a filha Márcia passou a morar longe da família. Ela conta que o pai não era de ficar ligando para saber como estavam as coisas. Mas a ligação entre os dois ia muito além do campo das palavras. Na distância entre o sul e o Planalto Central do Brasil, no seu silêncio, Francisco estava presente porque “ele era do tipo de pessoa que a gente sabia que estava sempre pensando e torcendo por mim” acrescenta Márcia. Ela sintetiza dizendo que o silêncio do pai não era símbolo de ausência, mas sinal de um grande respeito pelo espaço do outro.

A gravidez dos netos gêmeos alterou a rotina de Francisco. A partir do sexto mês de gestação, Márcia foi para a casa dos pais. Nos três meses restantes, uma espera cheia de alegrias e bons momentos. Francisco, Tânia, Márcia e o marido Antônio fizeram até uma viagem aos Estados Unidos para a compra do enxoval. Com o esperado e celebrado nascimento de Carlos Henrique e Arthur, foram mais três meses ajudando nos cuidados dos meninos. No rigoroso inverso porto-alegrense, Francisco cuidava de aquecer os pequenos. Quando esquentou, Márcia conta que por várias vezes viu o pai suando com os netos no colo ninando os dois na hora de dormir.

Entre os grandes ensinamentos de Francisco deixados para os filhos, ficou o exemplo de perseverança. Foram muitos os momentos em que ele dizia que “não importa o que os outros digam, ou o que houver de dificuldade. Você tem que correr atrás de seus sonhos”. Márcia recorda orgulhosa que quando o pai tinha alguma ideia ou projeto, buscava informações, estudava, buscava caminhos até conseguir fazer deles realidade.

Francisco segue vivo, na foto dele com chapéu de mestre cuca que enfeita a casa de Márcia. No olhar e companhia de “Guri, que foi morar com a filha. Na lembrança dos conselhos e do abraço amoroso do qual ele era dono. Na preparação das saborosas receitas aprendidas com ele."

A esposa também foi vítima da Covid-19. Para conhecer um pouco da história dela acesse a homenagem à Tânia Maria Devincenzi Reis neste Memorial.

Francisco nasceu em Bagé (RS) e faleceu em Porto Alegre (RS), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Francisco, Márcia Devincenzi Reis Terra. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 8 de outubro de 2023.