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Francisco Gilvan de Oliveira Ferreira

1979 - 2020

Para este seresteiro, domingo era dia de tocar teclado pra família e ensinar essa paixão musical para a filha.

A paixão que Gilvan tinha pela música era algo "surreal", como descreve a sobrinha Maria Eslânia. Ele, seu teclado e seu microfone faziam seresta em qualquer lugar. Até por volta dos 30 anos, os shows eram feitos em bares mesmo. Depois, as apresentações ficaram mais resguardadas, para a família e os amigos.

"Ele gostava tanto daquele teclado que quando a filha dele não tinha nem quatro anos, ele já estava ensinando a menina a tocar", conta a sobrinha. Para ela, o tio era uma grande inspiração; era como um pai. "Em homenagem a ele, eu até fiz uma tatuagem com esse tema: música".

Os fins de semana, que eram os únicos dias de folga que Gilvan tinha do trabalho, eram de melodia animada, em ritmo de abraços e declarações de afeto à sua família. Junto com a música, a família ocupava todo o seu coração.

De segunda a sexta, Gilvan entrava em outro ritmo: o de trabalho árduo, como motorista de caminhão de uma granja. O caminhão tinha também um lugar especial em sua vida – não tanto pela estrutura, mas pelo simbolismo. O pai de Gilvan era também caminhoneiro.

Durante a pandemia, Gilvan não parou um único dia de trabalhar e tinha orgulho por exercer uma profissão dentro da área dos serviços essenciais. "Ele era aquele tipo de pessoa que sempre colocava o outro em primeiro lugar, sabe?", diz a sobrinha lembrando de uma – das muitas histórias – de compaixão que fazia parte do dia a dia do seu tio. "Certa vez, em um dia comum de trabalho, ele parou para almoçar em um restaurante na estrada. Então, veio um rapaz até ele, dizendo que estava com fome e pedindo ajuda. O meu tio – que só tinha dinheiro para um único almoço –, vendo que não havia nada nem ninguém por perto ali, naquela estrada deserta, pagou o almoço para o rapaz".

De volta ao lar, as histórias vividas na estrada, as pessoas que conhecia pelo caminho, tudo era compartilhado com alegria. Era em sua casa, também, que ele sentia satisfação. Sua casa era seu maior orgulho. Um sonho que se realizou pouco a pouco, conforme, ele próprio, foi construindo e reformando as paredes, o piso, o telhado… cada detalhe até torná-la um lar.

Antes desse sonho começar a se realizar, ele e a esposa moravam em um quarto na casa dos pais dele. Foi quando eles souberam que sua filhinha estava a caminho, que decidiram colocar o plano de realização em prática; o casal contou com uma grande participação do sogro de Gilvan.

Entre os dias de trabalho na estrada e os dias musicais no seu lar, ele sempre acertava o tempo para demonstrar amor a todos de uma forma única. Maria Eslânia conta que, quando ela era criança, e o tio ainda não era pai, ele a mimava como se ela fosse filha dele. "Eu gostava muito de futebol e meu pai não apoiava muito esse gosto, porque se preocupava com as torcidas organizadas. Mesmo assim, eu gostava muito. Quando o São Paulo, meu time do coração, se tornou campeão mundial, o meu tio Gilvan me deu de presente uma camisa desse time. Foi muito especial para mim. Lembro disso até hoje".

Quando Maria Eslânia se tornou adulta e o tio se tornou pai, ele não mediu palavras para demonstrar o quanto admirava a sobrinha que viu crescer. "Eu fazia faculdade muito longe da nossa região e minha rotina era muito puxada. Um dia meu tio falou que admirava o meu esforço e que queria que sua filha se espelhasse em mim. Ele era uma das pessoas que eu mais amava no mundo e escutar isso dele foi tudo para mim...", conta Maria Eslânia, emocionada por lembrar o quanto essas palavras foram marcantes em sua vida.

As recordações que ficam são de um tio com espírito jovem, para quem o tempo parece nem ter passado. Afinal, desde 2010 ele dizia estar fazendo 28 anos em cada dia do seu aniversário. Gilvan encantou com seu canto e seu teclado – que sempre guardará músicas inesquecíveis. "Que sonho seria poder ouvi-lo cantar e tocar mais uma vez".

Francisco nasceu em Aquiraz (CE) e faleceu em Aquiraz (CE), aos 41 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha de Francisco, Maria Eslânia Rodrigues Almeida. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Michele Bravos, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 25 de junho de 2021.