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Gaudência Helena Cardoso Soares

1939 - 2020

Seu olhar verde resplandecia o prazer de festejar a vida a cada aniversário, uma alegria adiada pela infância humilde.

A infância de Gaudência foi marcada pela morte precoce da mãe e pelo trabalho na roça cuidando do gado. Ainda assim, houve espaço para se desenvolver na arte dos bordados.

Criada pelo pai e por madrastas, aos 30 anos ela se casou e logo teve o primeiro filho – que, infelizmente, faleceu no parto. Pouco tempo depois, vieram os gêmeos e, mais tarde, outros três filhos.

Após a morte do esposo e com os três últimos filhos ainda pequenos, Gaudência precisou multiplicar os horários de trabalho, e foram os bordados que aprendeu na infância o que garantiu o sustento da família na cidade em que morava.

Conta a neta, Maria, que Gaudência sempre foi uma mulher do campo. Alimentava os filhos com o que crescia em seu terreno; sabia cuidar bem da terra e dos animais. A neta lembra que, quando criança, tinha uma cabra que ficou prenha e quem fez o parto foi a Vó Gaudência.

Aliás, o título de avó era do que ela mais se orgulhava. "Em 1975, minha mãe engravidou e deu para minha avó o seu primeiro neto: Mateus. Em 1976, veio o meu irmão, João Marcos, que minha vó chamava de 'Meu João'. O amor dela por ele era incondicional. Em 1998, chegou o Messias e, em 2000, eu nasci. Depois, vieram os netos João Neto e João Guilherme. Era impressionante o amor que minha avó tinha pelos netos. Os olhos dela brilhavam nos almoços de família quando estavam todos reunidos", recorda Maria. A Vó Gaudência era também a parceira das sessões da tarde, recheadas de pipoca. Só não podia ser na hora do sono da tarde dela!

Para Gaudência, um dos momentos mais esperados do ano era o seu aniversário, quando sabia que toda a família estaria reunida, em celebração. Ela poria um vestido e estaria com "seu olhar verde reluzente". A neta lembra que a avó contava que nunca pôde comemorar aniversários na infância; então, quando cresceu, não deixava passar em branco. O último aniversário que celebrou foi o de 80 anos, em que a alegria era contagiante.

Seu amor pela família era tanto, que a perda de um dos filhos deixou sua saúde abalada, desencadeando vários problemas. Mas, dizem lá entre seus netos, que nunca viram mulher tão forte. "Minha avó parecia ser movida a força e, consequentemente, repassava toda essa força para nossa família. Sempre que algum de nós chorava, ela pedia pra sermos fortes. Ela era para nós símbolo de força e coragem. Todos nós aprendemos com ela a lutar pelos nossos sonhos".

Foi a neta Maria quem a acompanhou durante a quimioterapia para vencer um câncer de bexiga e, depois, nos dias em que esteve com Covid-19. "Antes de ela ser internada no hospital nós estávamos juntas, já que eu sempre a acompanhei em tudo. Minutos antes de entrar, ela me deu sua aliança e falou que pegaria quando saísse..."

Das inúmeras histórias que a neta tem com a Vó Gaudência, ela lembra com muito carinho dos anos em que moraram na mesma casa. "Depois do falecimento do meu tio, ela veio morar comigo e com uma das minhas tias. Na época, eu estudava à noite e todos os dias, quando eu chegava da aula, ia ao quarto dela e lhe dava um beijo".

Gaudência era a avó que torcia para que o neto "Meu João" se casasse. Para que a filha Mônica encontrasse seu "príncipe encantado". Para que a neta, que a chamava de "Minha Tetê", se formasse. "Não tenho dúvida de como ela estaria feliz em saber que tudo isso aconteceu e que somos gratos a ela".

Gaudência nasceu em Caruaru (PE) e faleceu em Caruaru (PE), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Gaudência, Maria Marcela Cardoso Soares. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Michele Bravos, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 25 de julho de 2022.