1964 - 2021
Os cafés da tarde eram marcados pela família reunida em torno da mesa e os biscoitos de polvilho, feitos por ele, que saíam quentinhos do forno.
Gilcely, que nasceu no sul do Brasil, cruzou o país até o norte em busca de felicidade. Natural de Iporã, no Paraná, mudou-se para Colorado do Oeste, em Rondônia, acompanhando o movimento de migração dos pais, João e Alice. O casal decidiu desbravar novas terras em busca de uma vida mais tranquila e um lugar para criar os oito filhos.
Com o passar do tempo, Gilcely encontrou seu amor e esposo, Moisés, com quem teve os dois filhos, Janiere e Jefferson. Em janeiro de 1982 Moisés estava em Minas Gerais, onde conheceu o pai de Gilcely, Seu João Firmino. Numa brincadeira casual, que na verdade foi uma espécie de profecia, disse que iria para Rondônia e se casaria com uma de suas filhas. Três meses depois, em abril do mesmo ano, a viagem realmente aconteceu e eles se conheceram, na cidade de Cerejeiras. “E foi amor à primeira vista”, explica a amiga Izabel.
Desde o casamento e por trinta e oito anos a relação deles foi muito afetuosa e de companheirismo. Para onde que que um deles fosse, era costume que o outro acompanhasse. Inspirados na “história de Neoqav”, que significa “Nunca Esqueça O Quanto Eu Amo Você”, Gilcely e Moisés frequentemente declaravam seu amor um pelo outro. Mesmo quando estava com Covid-19 — e recusando-se por algum tempo a ir para o hospital — ela fazia questão de repetir a frase para Moisés.
Evangélica e muito religiosa, um dos momentos muito apreciados por Gilcely eram aqueles em que a família se reunia para orações e cânticos evangélicos. Por meio da fé e de seu modo peculiar de ser, ela conseguiu manter a harmonia e a boa convivência familiar durante toda a sua vida. A amiga Izabel ressalta que Gilcely não era uma pessoa calma, “falava o que tinha que falar, mas de um jeito que apaziguava as coisas”. E a atitude valia para qualquer um da família, podia ser irmão, cunhado ou filhos.
As pescarias eram outros momentos de encontro dos familiares. As reuniões aconteciam nos sítios dos irmãos ou até mesmo em acampamentos à beira do rio Guaporé. Eram comuns as viagens até a cidade de Pimenteiras do Oeste, onde também aconteciam as pescarias. Gilcely participava de tudo: da pesca até o preparo dos pescados. Entre seus peixes preferidos estavam o mandupé, a pirarara e o pintado.
A tradição familiar acabou por inspirar a realização da Pesca da Família, evento organizado pela comunidade de fiéis da Igreja Presbiteriana do Brasil da cidade de Cerejeiras. Contando com a colaboração de Gilcely e de seus familiares, anualmente a comunidade de fé tinha encontro marcado na beira do rio para pescar e rezar.
Ainda em sua igreja, outro momento em que Gilcely ajudou bastante foi no período do início da construção do templo. Para ajudar o pastor Sérgio na arrecadação de recursos financeiros, ela colaborou na organização de diversos eventos e promoções. Um deles foi a Festa do Milho.
Vaidosa, ela gostava de se aprontar para ir à igreja. Sempre maquiada, preferia batons em tons mais escuros e colares de pérolas. Em casa, quando ia para a cozinha, usava um turbante para enfeitar a cabeça e ao mesmo tempo proteger os alimentos.
Gilcely gostava muito de cozinhar. Inventiva, vez por outra criava suas próprias receitas e fazia questão de que os familiares experimentassem. Costumeiramente, o sabor inventado era delicioso e agradava. O risoto preparado por ela era um dos pratos mais apreciados pelos familiares e amigos.
Ainda por conta de seus dotes culinários e de sua facilidade para agregar as pessoas, havia as reuniões vespertinas para saborear os biscoitos de polvilho da Fia — apelido carinhoso que várias pessoas usavam para chamá-la. Ela preparava a massa, aquecia o forno e colocava os biscoitos para assar. Em meio ao aroma delicioso da guloseima saindo quentinha do forno, irmãos e sobrinhos se fartavam. O café da tarde era também oportunidade para colocar a conversa em dia.
Os salgados e bolos de Gilcely eram muito saborosos. Habilidosa para o comércio, houve um tempo em que o preparo dos quitutes ajudou inclusive na complementação da renda familiar. Algum tempo depois, juntamente com a filha Janiere, ela conseguiu realizar seu sonho de abrir uma cafeteria, que recebeu o nome de Bela Gula. Gilcely também trabalhou numa loja de vestidos de noivas. Com muita paciência, ela colaborava na escolha do modelo adequado a cada uma das clientes.
Por falar nas atividades de trabalho, importante lembrar que logo na chegada à Cerejeiras, na dificuldade e falta de infraestrutura dos primeiros tempos, Gilcely atuou inclusive como enfermeira. Percebendo a necessidade de auxiliares para os partos, ela se dispôs a ser uma espécie de ajudante dos médicos. Nesse movimento, “foram muitos os que nasceram pelas mãos dela”, recorda Izabel.
Antes de terminar, é fundamental contar um pouco da relação de Gilcely com a neta Júlia e que, além dela, também foi “avó com açúcar” de Benício e Nícolas. Júlia é filha de Izabel com Jefferson, o filho mais novo de Gilcely. Os pais de Júlia não se casaram e inicialmente a netinha morava bem distante da avó, na cidade de Nova Califórnia.
No princípio, os encontros com Júlia, sempre marcados por muito afeto, aconteciam de forma virtual. No aniversário de um ano da menina, Gilcely viajou de uma ponta a outra do estado de Rondônia para participar da comemoração. Algum tempo depois, foi a vez de Izabel e Júlia fazerem a longa viagem até Cerejeiras, desta vez para morar perto da avó.
Na possibilidade de convívio diário, Gilcely fazia questão de atender a todos os pedidos da netinha. Quando a mãe Izabel ia trabalhar, era a avó quem cuidava da menina com todo carinho. Já um pouco mais crescida, Júlia quis ser ajudante de Gilcely na cozinha e ganhou um turbante semelhante ao da avó para enfeitar seu cabelo. No cotidiano da casa, Gilcely ensinava a Júlia os hinos da Igreja. Nas viagens para pescar, ensinou a neta a preparar o anzol e a ter paciência para fisgar os peixes. Agradecida, Izabel faz questão de lembrar de como a presença de Gilcely foi marcante no crescimento de Júlia até o final da infância.
Outra lembrança muito especial guardada nos corações de Izabel e Júlia é o abraço de Gilcely. Carinhoso e acolhedor, acontecia em momentos de felicidade, e também nas horas em que a necessidade era de colo e refúgio. Grata, Izabel recorda que “desde quando nos conhecemos, foi muita afinidade”. Atenta, Gilcely sempre percebia o sentimento de Izabel, de Júlia e de tantas outras pessoas. E às vezes, até sem a necessidade de palavras, sabia que era momento “daquele abraço".
Gilcely, que gostava de girassóis, segue viva nos cultos na igreja, que acontecem na sede que ela ajudou a construir. Na lembrança afetuosa de Izabel, para quem Gilcely segue como uma segunda mãe — "mãe de coração" —, que a vida lhe deu de presente. Nos silêncios à beira do rio nos momentos de pescaria.
Gilcely nasceu em Iporã (PR) e faleceu em Vilhena (RO), aos 57 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela amiga de Gilcely, Izabel Cristina Gomes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 4 de agosto de 2023.