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Herbert Pereira Bruzaca

1929 - 2020

Existir não lhe bastava, queria povoar o mundo com gestos de carinho e gratidão.

E esse seu projeto ainda vive.

Tinha o costume de contar, com um sorriso faceiro no rosto, que certa vez um adivinho lhe dissera que viveria com saúde e feliz até os 91 anos. Achava graça da previsão maluca.

Vivera, pois, conforme o vaticínio, 91 anos de devoção à família e ao ofício de Pastor evangélico. Neste ínterim, nunca encontrou empecilhos para ensinar aos filhos, netos e bisnetos que o amor conduz à salvação divina.

Amou e cuidou de sua esposa Natividade com esmero invejável e quando teve de ser internado sua maior preocupação era "Quem vai cuidar da Nati? Ela precisa de mim". Marido presente, amou com fervor sua nega, como lhe chamava carinhosamente.

A Bíblia Sagrada tinha um lugar especial entre os antigos livros de Teologia, devidamente organizados sobre a escrivaninha rústica de madeira, onde ele se sentava toda tarde, os olhos perdidos num horizonte que só existia em sonho, o pensamento longe, talvez recordando o tempo em que, com 18 anos, trabalhara como estivador, descarregando os barcos que chegavam à São Luís da década de 1940.

Criara um círculo virtuoso de boas ações e gestos de fé. Quando o Natal se aproximava, pedia ao filho mais novo que lhe ajudasse na organização da anual Missa de Ação de Graças. Todo ano a missa invadia a noite com orações em agradecimento por todos estarem saudáveis e, acima de tudo, juntos em família. Uma confraternização sincera entre irmãos que lhe roubava lágrimas de alegria e um sentimento de dever cumprido.

Não descuidara de ajudar os netos, mesmo nas coisas mais simples. Levava ao colégio, orientava, orava pelo sucesso deles e nos momentos de medo e dúvida dizia que ia ficar tudo bem. Quando seus netos o agradeciam com um abraço, ele tratava de dizer que "aquilo não era nada demais", mesmo sendo tudo que eles tinham naqueles momentos tão complicados. Fora um avô excepcional e deixara muitos ensinamentos aos mais novos.

O sorriso fraternal escondia-se sob um denso bigode bem cuidado, vez que mesmo na velhice não perdera a mania de cuidar-se. Pela manhã, caminhadas e exercícios físicos eram rotineiros. "Não sou velho coisa alguma! Ainda tô novo. Olha só...", dizia, mostrando o braço musculoso ainda que consumido pelo tempo, sempre que algum filho lhe titulava por 'idoso'. Queria viver em profusão o corpo forte com o qual Deus lhe presenteara.

Nas tardes mansas, quando não havia nada para fazer além de ver por sobre os umbrais as andorinhas e rouxinóis que faziam ninho próximo de sua casa, ele encontrava uma forma de ensinar alguma lição de vida: "Ame, seja sincero e não canse de trabalhar. Respeite sua esposa e cuidado com os falsos amigos. Amigos de verdade só mesmo seus pais. Tenha um minuto para a palavra de Deus e quando puder, tire o dia de folga para estar com quem te faz feliz", dissera ele ao neto Mateus, num destes dias. Ensinamentos que ressoam e fazem vibrar os tambores da saudade.

Não conseguia ficar parado o velho Herbert. Tinha aversão ao ócio e à preguiça. Dizia que se não pudesse trabalhar, já não teria razão para viver. Trabalhou duro até seu último suspiro, deixando todos os médicos surpresos com sua vontade de viver. Talvez o aforismo "o trabalho dignifica o homem" esteja certo. Herbert fora homem digno e assim ganhara a honra de poder descansar em luz ao lado do Senhor, depois de 91 anos espalhando palavras e gestos de bondade a todos que ao seu lado estiveram.

Viveu feliz e hoje descansa. Fez por merecer.

Herbert nasceu em São Luis (MA) e faleceu em São Luis (MA), aos 91 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo neto de Herbert. Este tributo foi apurado por Acsa Tayane, editado por Andressa Cunha, revisado por Joselma Coelho e moderado por Rayane Urani em 17 de junho de 2020.