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Idélcio dos Santos

1953 - 2020

Tinha uma Paraty verde e amava viajar nela, com suas meninas, até sua cidade natal.

Nascido no interior da Bahia, ele era um "filho da roça". Foi o filho mais velho, seguido por mais sete irmãos em uma família bastante humilde. A cidadezinha onde nasceu era atravessada por um rio, de forma que sua infância foi banhada a muita diversão em suas margens. Ao mesmo tempo, muito cedo já se mostrava muito batalhador, empenhando muito de seu tempo na lida do campo e ajudando a sua mãe.

Na juventude, veio o sonho de deixar a terra natal em busca de melhores condições de vida. Com esse intuito, rumou para São Paulo, onde foi logo acolhido por seu tio Juraci, e em pouco tempo conseguiu ter seu próprio espaço. Trabalhou em várias funções — faxineiro, porteiro, vigilante, segurança — destacando-se sempre por sua forma digna de atuar. Nas terras paulistas ganhou o apelido de Baixinho.

Nas idas e vindas entre São Paulo e o interior da Bahia, Idélcio foi aprofundando uma amizade de infância com aquela que viria a ser sua esposa. Fátima conta que nunca imaginou que poderia acontecer algo de mais entre eles, principalmente depois que ele se mudou, pois acreditava que, com seu jeito galanteador, ele logo arranjaria uma namorada paulista. "Na juventude ele gostava de ir aos bailinhos", diz a filha, Dayana. "Segundo a minha mãe, era um rapaz bem animado. Tímido com desconhecidos, mas bem extrovertido com os amigos. Tem uma foto dele em que está muito estiloso, com cabelo 'black power', calça boca de sino e óculos 'ray-ban'. Bem 'vibe' anos 70. Eu amo essa foto!", conta.

Enfim, seguindo com a história do casal, quando menos perceberam, já estavam namorando. Durante algum tempo mantiveram um relacionamento à distância, mas logo se casaram. Quando Fátima ficou grávida eles se mudaram definitivamente para São Paulo. Viveram juntos por mais de quarenta anos. Dessa união vieram quatro filhas. Para a esposa ele era o Dé, aquele que não era muito de falar sobre sentimentos, mas que demonstrava todo o seu amor nas atitudes. Sempre apoiou muito as filhas. "Nós sabíamos que podíamos sempre contar com ele, de alguma forma. Ele não era daqueles homens que diziam ou pensavam 'eu sou o homem da casa, sou eu quem manda aqui'. Todas nós tínhamos voz e autonomia, mesmo quando crianças. Éramos cinco mulheres, contando com minha mãe, e ele sempre teve uma atitude de nos deixar crescer livres, sem rigidez. Claro que dava limites, mas com liberdade para a gente ser o que era. Ele era muito colaborativo, nunca foi um homem machista", conta Dayana.

Na época das crianças pequenas Dé também cuidava com muita estima de sua Paraty verde e nela fizeram muitas viagens à Bahia. Dayana relembra: "A viagem mais especial da minha infância foi nessa Paraty. Fomos apenas em três: ele, uma irmã e eu. Foi muito divertida a experiência, eu nunca tinha ido tão longe de carro. Íamos passando pelos estados e parávamos nas pousadas. Em Minas Gerais, em uma das rodovias, aconteceu um fenômeno marcante: dava impressão que só chovia de um lado. Me lembro dele mostrando: ‘Vocês estão vendo!? Lá atrás sem chuva e aqui em frente chovendo’. Tínhamos a impressão de que tinha uma nuvem de chuva apenas na Paraty".

À medida que Dé foi desenvolvendo laços em terras paulistas, adotou também o carinho pelo Palmeiras. Era um torcedor tranquilo, que curtia acompanhar os jogos no sofá de casa mesmo. Chateava-se com algumas derrotas? Chateava-se; mas o lema de vida dele era o "bola pra frente". Ainda assim, ele conseguiu influenciar as irmãs, de forma que, unindo-se aos compadres e ao genro, vibrava pelo "alviverde imponente".

Até aposentar-se, Idélcio trabalhou por mais de vinte anos como vigilante e segurança da antiga distribuidora Antártica. Das "histórias da firma", ele gostava de contar da amizade dele com os cães, que eram os seus companheiros de turno. Ele cuidava dos cachorros e eles o ajudavam na função vigiar.

Ainda que seu coração fosse se tornando paulista, Dé jamais abandonou suas raízes baianas. Quando se aposentou, pôde viajar com mais frequência para a Bahia, onde residem muitos familiares — avó, tios e primos. Essas viagens eram a alegria dele. Eram muito aguardadas, mas não muito planejadas, pois, do nada, ele avisava: "Estou indo para a Bahia amanhã!" As viagens eram de carro — por sinal, amava viajar de carro. "Pegava a gente de surpresa, nos informava só um pouco antes de partir".

Em São Paulo seu lugar preferido era o bairro onde morava. Após a aposentadoria, ele passou a ficar muito em casa e passou a fazer caminhadas — atividade que ele amava. Ele sempre foi muito querido pela vizinhança e, por onde andava, as pessoas acenavam ou falavam com ele. Quando ele "descobriu" que gostava da praia, começou a planejar a aquisição de um imóvel no litoral paulista, mas, infelizmente a pandemia de Covid-19 interrompeu esses planos.

Antes de sofrer um AVC, Idélcio gostava de ir ao botequinho jogar sinuca, antes do horário do jantar. Depois, ele deixou de frequentar o boteco, ficou caseiro e virou noveleiro: amava ver novelas, que assistia junto com a esposa. Possuía seu lugar cativo no sofá, onde tirava seu cochilo após o almoço ou se sentava na hora da novela. "Tinha essa mania de sentar sempre no mesmo lugar, que virou o cantinho dele mesmo", conta Dayane. E ficou emotivo também, emocionando-se com facilidade nas cenas mais comoventes. Como gostava de caminhar pela cidade, só usava o carro se fosse inevitável ou muito longe. E gostava de música: tinha um teclado e um violão. Gostava de ter esses instrumentos em casa. Nunca aprendeu a tocar muito bem, mas vira e mexe ficava dedilhando o teclado.

Sempre acordou bem cedinho. Fazia o café da manhã, ia até a padaria, assistia um pouco do noticiário e depois ia para a sua caminhada rotineira. Gostava de jogar damas no celular. E, depois que adquiriu um smartphone, participava do grupo de família feito pelos parentes da Bahia num aplicativo de mensagens. "E sabe como são esses grupos de família, né?", comenta Dayane. "O pessoal ficava enviando vídeos engraçados da internet, conversando fiado, e ele gostava de assistir e de ouvir as presepadas dos primos e das tias. Morria de rir".

Idélcio possuía uma personalidade forte — para ele era ou oito ou 80. Era um tanto reservado e, com o passar dos anos, foi ficando mais teimoso. Tinha os momentos em que era conversador e outros em que gostava de ficar na dele, quieto. Era muito prestativo e estava sempre ajudando todo mundo. Carismático, tinha facilidade para fazer amigos e na vizinhança todo mundo gostava dele. Como pai e avô, era maravilhoso, sempre presente.

Possuía uma garra admirável! Sempre perseverante, demonstrava bastante autoconfiança, não importava o que os outros dissessem. "Ele fez de tudo por nós, filhos e netos. Com certeza ajudou muita gente, de várias formas. Como ele foi o primeiro da família que veio para São Paulo, quase todos os outros parentes que vieram fazer a vida aqui ficaram na nossa casa até se estabelecerem em algum emprego. Ele apoiou muita gente neste sentido. Mesmo numa casa de três cômodos minúsculos, com quatro filhas pequenas", conta Dayane.

"Ele conseguiu driblar as dificuldades: era nordestino, negro, vivendo em São Paulo praticamente sozinho. Muito trabalhador, suou bastante para conquistar as coisas dele, sem enveredar por caminhos tortuosos. Sempre foi responsável e digno, embora, na época em que chegou — mais ou menos no final dos anos 70 — a vida nesta cidade fosse uma luta diária. Principalmente para o povo nordestino, que chegava com o desejo e os sonhos de uma vida melhor e se deparava com a desigualdade social. Ele batalhou muito aqui."

Para filhas e netos, Idélcio deixou a grande lição da autoestima. Deu o exemplo de sempre acreditar, de nunca desistir. "Eu penso assim quando lembro dele, sobre ter fé na vida e sobre ter fé na gente mesmo. Independentemente do que o mundo diga, nunca deixar de acreditar em si mesmo, ser humilde e grato".

Tinha grande paixão pelos netos: três netinhos e uma netinha. Ele praticamente ensinou todos a andar. Estimulava e brincava. Foi avô pela primeira vez quando a filha tinha 16 anos, e deu todo o apoio, cedendo um espaço e ajudando na construção da casa da nova família. "A minha filha foi a última neta dele; nasceu prematura e ficou na UTI neonatal. Todos os dias meu pai ia comigo até o hospital, durante um mês. Eu sou a filha caçula dele e durante toda a minha gestação ele foi muito presente. Sempre que precisei de alguma coisa ele me ajudou", finaliza Dayane.

Idélcio nasceu em Ponto Novo (BA) e faleceu em Osasco (SP), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha caçula de Idélcio, Dayana. Este texto foi apurado e escrito por , revisado por Ana Macarine e Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 24 de novembro de 2021.