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Ilton Cabral da Silva

1949 - 2021

Pé de valsa, fazia questão de ficar 'todo na estica' e deslizar na pista de dança com a amada nas festas e bailes.

Nos recantos das memórias de muita gente, as lembranças de Ilton remetem a um homem alegre, honesto, humilde, gentil, prestativo, incrível, bem-humorado, pé de valsa, acolhedor, bonachão, tranquilo, generoso, carinhoso, amoroso, grande inspiração... Imagem construída durante 71 anos na cidade de Paranaíba, localizada na porção nordeste de Mato Grosso do Sul, bem próximo à divisa com os estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo

Com um sorriso no rosto, ele estava sempre bem-disposto para o que a vida lhe apresentasse. Foi assim que o filho de Guilherme e Aurora cativou muita gente durante sua existência, a começar pelo tempo de infância, na convivência com os irmãos Maria, Elza, Elvo, José e Ilvo.
Tratorista na zona rural de Paranaíba, um tempo depois Ilton tornou-se caminhoneiro. Inicialmente ele fazia entregas na própria cidade. Não é de todo impossível que alguém que leia essa história tenha consumido um bocado de açúcar ou farinha de trigo transportadas na carroceria do caminhão truck que ele dirigia com uma leveza e competência impressionantes. Por hora, guardemos o acontecido depois da aposentadoria como uma cereja que espera o final da preparação de um bolo...

Na juventude, o homem sorridente e magro, com seus um metro e oitenta e dois centímetros de altura e sessenta e oito quilos, conquistou o coração de dona Ivan. No cotidiano do casal, havia muita cumplicidade. Sexta-feira era dia de sair juntos. Como dançavam muito bem, eles frequentavam bailes em fazendas e de terceira idade. Nos quintais e salões, Ilton e Ivan chamavam a atenção enquanto dançavam de tudo um pouco. Os ritmos preferidos dele eram xote, vanerão e rasqueado. Donizete, um dos integrantes da Banda Arco Íris, conta que Ilton ligava para saber onde eles iam tocar. Costumeiramente enquanto a banda tocava, Ilton e Ivan roubavam a cena no salão com seus passos e trejeitos.

Eles também não perdiam as Festas de Santos Reis que são comuns na zona rural de Paranaíba. Bom que se diga que Ilton cresceu frequentando essas festas que aconteciam em diversas fazendas, nas regiões da Velhacaria, Figueira, Córrego do Ouro (MS) e acompanhava respeitoso a cerimônia de saudação da bandeira.
Nos dias de baile ou festa, Ilton fazia questão de ficar “todo na estica” vestido com calça alinhada e botina de pelica com zíper do lado. Dentre as delícias servidas nesses eventos, Ilton apreciava o macarrão com frango e carne de lata. Na sobremesa, doce de bolinha de queijo e jaracatiá com leite.

No cotidiano, mesmo sendo “pura magresa” Ilton era comilão e apreciava diversos sabores. Gostava muito de galinhada e costela cozida. De vez em quando pedia para fazer carne de panela “bem molinha”. O frango caipira e o angu de milho salgado também ocupavam lugar de destaque nas preferências dele.

Ainda no universo culinário, as visitas ao sítio dos compadres Zé e Rosa são dignas de nota. É que Ilton apreciava frango caipira servido com gueirova, como falam de costume (guariroba, uma espécie de palmito amargo comum na região). Nos dias em que Ilton aparecia, compadre Zé sempre cortava um pé de guariroba que era cuidadosamente preparado no fogão a lenha por dona Rosa. E os sobrinhos Danieber e Doglas, ficavam zoando o pai “Zé” dizendo que “aqui em casa a gente só come gueirova quando o Irtão vem”, porque Zé não gostava de cortar as palmeiras.

Impossível não falar dos churrascos que ele organizava no final de semana, debaixo do pé de Oiti plantado na frente da casa na rua Barão de Rio Branco. Os encontros reuniam muita gente para além dos familiares. Tudo preparado, no mais era só convivência alegre e divertida.

Voltemos ao amor de Ilton e Ivan para dizer que o casal gerou filhos Rosilayne, Keillymarce, Kátia Michelli e Lúcio Roberto. Para todos eles Ilton foi um pai carinhoso e dedicado. A vizinha Nercy, que foi professora dos filhos de Ilton, conta que ele era dono de um sorriso e um olhar tranquilos. Relembra também que ele foi um pai que sabia acolher os amigos dos filhos. E assim, graças à boa relação entre a vizinhança, a moçada cresceu junto.

Kátia Michelli, que mora fora do Brasil, resume que “o homem da minha vida era o meu pai”. Ela faz questão de dizer que aprendeu com ele a alegria de viver, honestidade, humildade e gentileza. Princípios que levou consigo na mudança para a Bélgica e ainda hoje tem como modelo no seguimento da vida.

Emocionada, ela relembra agradecida o apoio que recebeu do pai quando aos vinte anos, decidiu mudar para outro país. “Por mais que tenha doído nele, ele me apoiou e incentivou”. Complementando o raciocínio, Kátia acrescenta que o pai foi “um marco em minha vida” e que sente muita falta das mensagens que trocavam pelas redes sociais depois de sua mudança para a Europa.

O tempo foi passando e depois dos filhos vieram os netos Leandra Elena, Lúcio Júnior, Victor Alexandre e Valentina Beatriz. Leandra Elena, com uma doçura na voz, descreve o avô como alguém que tinha um “olhar bonito de felicidade”. Recorda que o avô foi como um pai, uma vez que ela ficava na casa dos avós enquanto os pais dela estavam no trabalho. Entre as lembranças carinhosas da neta estão as sonecas que Ilton tirava debaixo do Oiti.

E os cuidados com ela e com os outros netos não tinham fim. Na infância deles, havia sempre tempo e espaço para brincadeiras. Na hora de fazer as tarefas da escola, para o momento do lanche, ele preparava salada de frutas e fazia bolo. “Se ele fosse bater um prego, me levava junto e tinha a maior paciência do mundo quando eu queria participar de algo que ele estivesse fazendo”, explica Leandra Elena. Foi ele também que ensinou a neta a jogar baralho que, em muitos momentos, os dois jogavam debaixo do Oiti na frente da casa.

Entre os sobrinhos não era diferente. Vez por outra, no final da tarde, o sobrinho Cabral passava na casa do “tio Irtão” para tomar uma dose de cachaça e conversar um pouco. É que Ilton também apreciava “tomar uma pinga”. Em casa, ele mesmo curtia suas cachaças que, nas garrafas, ganhavam sabores e aromas de murici, rapadura, abacaxi e uva passa.

Por sua vez, a sobrinha Rita descreve que o “tio Irtão”, pelo fato de ser muito alto e ter um caminhar muito particular, era identificado de longe. “Bastava olhar para saber que era ele, estivesse onde estivesse”, acrescenta. Para irritar a sobrinha, pois sabia que ela não gostava disso, toda vez que se encontravam e ele estava com a barba por fazer, o tio esfregava o rosto no rosto dela. Após ficar muito brava, ato contínuo, os dois já estavam sorrindo.

A sobrinha neta Giuliane é só gratidão ao falar do “tio Irtão”. É que ele foi um grande apoiador da iniciativa dela de produzir bolachas para vender e conseguir renda. Com muita generosidade ele a incentivava a persistir no negócio. No final da história, com o sucesso das bolachas, e sempre com o estímulo do tio, a sobrinha conseguiu abrir seu “café com bolacha”, casa através da qual segue ganhando a vida.

O certo é que, ao longo de sua jornada, Ilton, um homem para quem parecia não haver dificuldades na vida, fez muitas amizades na vizinhança, na cidade de Paranaíba, nas fazendas e outros lugares por onde passava. A filha Kátia arrisca que se em algum momento ele tivesse se candidatado a vereador seria eleito. Popularidade que, em alguma medida, pôde ser comprovada com a homenagem que ele recebeu da Câmara Municipal depois de seu falecimento.

Quanto ao sorriso de Ilton, é importante acrescentar mais alguns detalhes. Como só usava uma parte da dentadura, era um sorriso meio murcho, com um ar de deboche e safadeza, mas cheio do frescor da alegria. Todos que conviveram com ele descrevem que ele sorria parecendo uma criança. Com seu jeito brincalhão e debochado chegou a ser chamado de Costinha (numa remissão ao humorista de mesmo nome) pela sobrinha Keila. Se percebesse que alguém estava emburrado ele sempre fazia uma graça e ria. Nestes momentos valia fazer caretas, fingir dormir deixando um olho aberto e outro fechado e usando sua habilidade de pé de valsa, dançar com uma garrafa.

Por fim a tal cereja do bolo prometida lá no início desta história. Depois de aposentado Ilton virou o “Tio da Pamonha”. Juntamente com o filho Lúcio, construiu um ralador elétrico de milho. A inventividade da dupla foi capaz de usar um motor de tanquinho e tubos de PVC para montar a engenhoca que funcionou perfeitamente por anos.

Para abrigar a fabriqueta, usando suas habilidades para diversos tipos de trabalho, Ilton construiu um cômodo específico para que ele e dona Ivan produzissem as deliciosas pamonhas. Desde então, o casal acordava bem cedo para produzir e embalar as delícias.

O cardápio era variado. Tinha as de doce só com queijo, ou com queijo e goiabada. Nas de sal os recheios eram bem variados com misturas de queijo, pimenta, linguiça, cebolinha, gueirova e jiló. Para identificar cada sabor, seu Ilton e dona Ivan usavam barbantes de crochê coloridos, o que dava um ar de festa e cor às caixas usadas para transportar as deliciosas pamonhas.

Às segundas, quartas e sextas-feiras era dia de pegar a moto e sair vendendo pamonhas. Neste movimento, ele circulava pelo comércio, repartições públicas, hospital... Cleo Guerra, enfermeira do hospital, relembra que o “tio da pamonha” chegava sorridente. Ele sabia o gosto de cada um dos clientes e até mesmo a quantidade que cada um costumava comprar. “Carismático, ele sempre dava um abraço na gente”, completa Cléo.

Seu Ilton, o “tio Irtão” ou o “tio da pamonha”, que dormia com as mãos entrelaçadas sentado na cadeira, segue vivo na lembrança de cada um que sentiu o sabor de suas deliciosas pamonhas. Nos bailes da Banda Arco Iris. Nos ensinamentos passados a sobrinhos, filhos e netos.

Ilton nasceu em Paranaíba (MS) e faleceu em Paranaíba (MS), aos 71 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Ilton, Keillymarce Queiroz Silva Linauer . Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 21 de novembro de 2023.