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Íris Fialho Abdala

1930 - 2020

Sempre atuou na defesa dos mais vulneráveis, sobretudo após sua formação em Direito. Acolhia sem julgar.

“A vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.”
(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Foi esse o livro que ficou repousando na escrivaninha de Iris quando ela partiu.

Ela era uma grande leitora, estudiosa e guerreira. Numa época em que as mulheres estavam destinadas a cuidar da casa e da família, em um contexto patriarcal e machista, Iris cursou Direito, foi aprovada num concurso dificílimo e exerceu a função de Procuradora Federal em São Luís (MA) até sua aposentadoria.

Progressista, desde muito cedo Iris apoiava e acolhia a população excluída e discriminada, seja pela condição econômica, de saúde ou de gênero. “Minha avó foi a única pessoa a acolher, na década de 1950, uma pessoa transexual em sua casa. A moça havia sido colocada para fora de casa por seus próprios pais, que não aceitavam sua transexualidade. Além disso, acolhia usuários de drogas, dando-lhes comida e roupas. Nunca julgou ninguém. Sempre acolhia e respeitava todos que a procuravam”, relata a neta Lilia.

E Iris também constituiu família, emanando amor, bondade e sabedoria. Segundo a neta e vizinha Lilia, Iris “liderava uma grande família que a cercava diariamente”. Teve 8 filhos, 20 netos e 10 bisnetos. A primeira tataraneta que nasceu em 2021 não teve a oportunidade de ser acolhida pela doçura e pelo sorriso de Iris.

Uma das filhas, afirma Lilia, foi adotada pela avó. “Era uma família muito pobre, que morava em palafita. Ela acolheu a mãe e a bebê. A mãe infelizmente não quis ficar e preferiu deixar a bebê com minha avó”. A adoção foi formalizada, já que Iris era muito séria e correta. “Tia Raphaella era o xodó da minha avó”, complementa a neta, que também discorre sobre o sofrimento de Iris diante da morte da filha por problemas cardíacos em 2017.

Vaidosa e elegante, Iris gostava de passear, conversar sobre a vida com as pessoas, ficar na varanda observando o movimento e sentindo o vento enquanto tomava seu café ou lia um livro. “Era a pessoa que mais gostava de ler! Lia livros difíceis! Amava os de História, sobretudo História do Brasil”, relata a neta.

Além de leitora, Iris também escrevia. Estava sempre acompanhada de um caderninho, onde fazia suas anotações.

Durante a pandemia, era ela quem acompanhava os netos nas atividades escolares on-line. “Eu sempre me surpreendia com sua inteligência. Raciocinava mais rápido que qualquer jovem e era viciada em tecnologia: tinha perfis em duas redes sociais e usava aplicativo de mensagens pelo celular”, conta Lilia.

A família sabe que Iris teve uma vida linda. O que não significa que não sintam a dor dilacerante da despedida e a saudade ardente todos os dias.

Lilia e os outros netos não são mais recebidos diariamente com o sorriso doce e a voz tenra dizendo “eu te amo”. Ela e os primos não podem mais oferecer o primeiro pedaço de bolo à avó, que tanto gostava de homenagens.

Mas Iris continua dentro deles, através das lembranças de força e coragem dessa mulher sábia e amorosa. Por isso eles farão todas as homenagens possíveis a essa avó que eles tanto amaram e amam. “Te amamos, vovó Íris”.

Íris nasceu em Barra do Corda (MA) e faleceu em São Luís (MA), aos 90 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Íris, Lilia Abdala Lima. Este tributo foi apurado por Samara Lopes, editado por Denise Stefanoni, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 29 de junho de 2021.