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João Carlos Figueiredo da Fonseca

1956 - 2020

Em vez de dizer "eu te amo" ele demonstrava seu carinho com gestos e atitudes.

Ser apenas um ponto na imensidão das águas ou no alto das montanhas era uma das paixões de João Carlos. E de tanto experimentar o vasto mundo, ele foi capaz de dizer que “partia de braços abertos”. Sincero, falante, honesto, independente e muito respeitoso em suas relações, João fez seu caminho.

Por algum tempo, foi dono de um restaurante no bairro do Campo Belo, na capital paulista. Contudo, a rotina era muito intensa e consumia bastante os dias de João. Foi então que, na intenção de ter maior autonomia na gestão do próprio tempo, ele vendeu o estabelecimento e passou a atuar no ramo de guincho de veículos e caminhões.

O novo negócio foi oportunidade para que fizesse dois grandes amigos. Balbino e Alessandro, que também atuam no mesmo ramo. Foi com Alessandro que João aprendeu a operar o caminhão guincho. Já com Balbino, as trocas de experiência e interações sobre o negócio eram uma constante, o que acabou por torná-los bons amigos.

A lida com o caminhão foi oportunidade para que João tivesse uma participação muito importante na vida do filho Felipe. Após um problema de saúde, Felipe teve dificuldade em encontrar um novo emprego. Diante da situação, o pai propôs que o filho também trabalhasse com caminhão guincho. E assim foi. O plano era que quando João se aposentasse, o veículo ficasse com Felipe, o que acabou acontecendo antes da hora e numa situação bem fora do planejado.

Com o outro filho Marcelo, muito parecido fisicamente com o pai, a relação acontecia mais a distância. Mais quieto e morando em Suzano, São Paulo, Marcelo se encontrava com o pai de vez em quando. Uma das vezes em que isso ocorreu foi no nascimento de Jean, um dos netos de João.

Durante muito tempo ele alimentou o sonho de morar na praia. Com a venda do restaurante e a herança que recebeu dos pais — José Carlos e Maria da Assunção —, João conseguiu tornar esse sonho realidade. Comprou uma casa e mudou-se para a cidade de São Sebastião, no litoral paulista. Na localidade, ele passou a estar mais perto do mar e da natureza, ambientes que muito o atraíam.

Nos momentos de lazer, João aproveitava para navegar com seu pequeno barco nas enseadas da região de São Sebastião e na represa de Nazaré Paulista. Também curtia muito os passeios de jipe em estradas de terra da região. Noutros momentos, fazia caminhadas em meio à vegetação exuberante da Mata Atlântica, aproveitando cada instante para respirar ar puro, ouvir passarinhos e saborear o frescor da sombra das trilhas.

O jeito ativo de João o aproximou de Fatima, sua segunda companheira. Ele já estava divorciado de Maria Idalina, a primeira esposa, quando, numa sala de bate papo na internet, os caminhos dele e de Fatima se cruzaram. Na rede, marcaram um encontro no Parque do Ibirapuera, onde teve início um relacionamento de muito carinho e atenção.

A afinidade entre os dois era muito grande, a tal ponto que, de vez em quando, Fatima acompanhava João no reboque de algum veículo, só pela oportunidade de estarem próximos um do outro. Contudo, os dois decidiram que cada um continuaria morando em sua própria casa. Com a mudança de João para o litoral, depois de algum tempo, Fatima mudou-se para Maresias, uma das praias de São Sebastião. É que o amor pedia que ficassem mais perto um do outro. Pouco tempo antes do falecimento de João, Fatima mudou-se para mais perto ainda de onde ele morava; mas, por razões que ninguém explica, João não teve tempo conhecer essa nova moradia.

Em cada uma das casas, dois objetos decorativos marcavam o desenrolar da relação entre João e Fatima. São duas pirâmides, trazidas por ela do México, uma representando o sol e a outra a lua. A do sol ficava na casa de João, a da lua na de Fatima.

João não era do tipo de homem que dizia “eu te amo”. Nas idas de Fatima à sua casa, ele demonstrava com gestos e atitudes o seu carinho por ela. Sempre preparava um jantar saboroso para recebê-la. O prato que ele mais gostava de preparar nessas situações eram filés "sassami" de frango, que cozinhava com todo capricho no tempero. Tinha também pães de queijo, açaís e deliciosos cafés da manhã. Em nenhuma hipótese aceitava que Fatima limpasse a casa. Se ela quisesse começar, ele logo ia dizendo “deixa que eu limpo a minha casa”.

Bom dizer que um dos companheiros das aventuras de João era um dos filhos de Fatima. Sempre que podia, Marcelo, que tinha o mesmo nome de um dos filhos de João, o acompanhava em suas trilhas e navegações.

Com Ramiro, o outro filho de Fatima, a relação também era muito boa. Certa vez ele agradeceu a João “por ter feito minha mãe feliz”. Foi ele que esteve ao lado da mãe nos momentos difíceis do tratamento e despedidas de João. Por algum tempo, os contatos da equipe médica com a família aconteciam através do celular dele. Nos preparativos para o sepultamento, como sabia que João não gostava de gravata, juntamente com Fatima e outros membros da família, separou apenas a camisa e o paletó.

Outra atividade muito prazerosa para João era consertar coisas. Num cômodo da casa havia um balcão e um painel, onde, organizadamente, guardava suas ferramentas. Se alguém tirasse alguma e não a colocasse no lugar, ele ralhava e pedia para não fazer isso, para que, quando precisasse, não fosse preciso ficar procurando. Sempre muito gentil, João não se recusava a consertar nada que alguém pedisse e ele soubesse como resolver.

Não é possível falar do João sem contar um pouco de suas viagens, que, além de permitirem conhecer os lugares, traziam oportunidades para que fizesse amizade com animais. Certa vez, num acampamento em Urubici, Santa Catarina, encontrou um touro. O bovino cismou de ficar perto da barraca, do outro lado da cerca. Com isso, nas idas ao supermercado, a compra de cenouras para oferecer ao animal foram uma constante. E, afetuoso, João decidiu inclusive dar ao touro o nome de Ferdinando. Noutra oportunidade, no alto de um morro nas cercanias da cidade mineira de Gonçalves, encontrou um cão. Depois de amizade feita, João providenciou ração para dar ao bicho, que também recebeu um nome: Petrus.

No cotidiano da casa, os gatos Smeagol e Dona foram companheiros de longa data. Smeagol pertencia ao pai dele e com o falecimento de Seu José, João o adotou. Agora, quem cuida do gatinho, que, com seus 17 anos parece imortal, é Fatima.

Na última viagem que fez com Fatima para o Chile, outro fato associado ao carinho de João pelos animais. Na bagagem ele decidiu levar um pacote de ração para cães. Na fronteira com o país andino, queriam proibir a entrada do alimento canino e João precisou convencer o guarda de que era para alimentar cães de rua que eventualmente encontrasse durante seu deslocamento. Ao final da negociação, o pacote foi liberado. No caminho, a ração foi importante para alimentar um cão que trazia no pescoço uma coleira com o nome Apolo. Ele deduziu que o animal estava perdido e, numa busca pela cidade onde estavam, acabou por encontrar o dono e deixar Apolo em casa antes de seguir viagem.

Num mini "motor home", João e Fatima seguiam em direção a São Pedro do Atacama. Era o início da pandemia de Covid-19, e dois dias depois de entrarem no território chileno foi decretado o fechamento da fronteira. O resultado é que uma viagem que duraria bem menos tempo, acabou se estendendo por cerca de três meses! Para conseguirem retornar ao Brasil, precisaram contar com a ajuda do consulado brasileiro. É que, com as fronteiras fechadas e decretos de "lockdown" em muitas cidades do Chile e da Argentina, o casal não conseguiria retornar por seus próprios meios.

Por intermédio de um grupo de rede social, criado por brasileiros na mesma situação, João e Fatima descobriram que uma comitiva de brasileiros, que também estava com seus veículos no Chile, partiria da cidade chilena de Limache. Saindo de São Pedro do Atacama, percorreram 1.800 quilômetros até o local e, de lá, com escolta das guardas de segurança, deixaram o Chile, cruzaram a Argentina e entraram novamente no território brasileiro pela cidade gaúcha de Uruguaiana.

Essa viagem prolongada foi uma espécie de despedida; ao mesmo tempo, foi uma oportunidade de convivência diária e intensa. No caminho, João e Fatima precisaram encontrar local para estacionar o veículo, preparar suas refeições e solucionar todas as questões que surgiam. Nesse movimento, nasceu o projeto de viajar mais. E os dois, que optaram por morar em suas próprias casas, pelo menos por algumas temporadas, morariam juntos na casa sobre rodas. Lamentavelmente, não conseguiram realizar esse sonho, uma vez que pouco tempo depois do retorno João adoeceu e partiu.

A viagem também produziu um outro sonho que João apenas começou a tornar realidade: a transformação de um micro-ônibus em "motor home". Com a experiência da viagem ao Chile, ele queria ter um veículo um pouco maior e com mais conforto para os viajantes. Chegou a comprar um micro-ônibus, que transportou do Rio Grande do Sul até São Paulo em um de seus guinchos. Já estava cuidando da revisão mecânica do veículo, mas não pôde prosseguir. O plano era que ele mesmo, com suas habilidades e ferramentas, fizesse praticamente todas as adaptações necessárias. Com um detalhe: o projeto era levar os gatos junto, pois a intenção era fazer viagens de longa duração.

João segue vivo no trabalho de Felipe, que agora está na direção do caminhão dele. Na pirâmide representando o sol, que ainda hoje acompanha os dias de Fatima. No perambular, lento e calmo, de Smeagol e Dona pela casa que Fatima comprou para ficar perto dele.

João nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Sebastião (SP), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa e pelo genro de João, Fatima Aparecida Nunes Cardoso e Carlos Henrique Joaquim. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 19 de agosto de 2022.