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João Domingos dos Passos

1937 - 2020

Sua doçura era traduzida pelas hábeis mãos que, ao trançar a taquara, produziam verdadeiras obras de arte.

Alguns chamam de bambu, outros de taquara ou até mesmo de taboca, mas isso não tem a menor importância. O que tinha valor para o nosso João eram as cestas e os balaios de variados tamanhos e modelos que tomavam forma a partir de suas habilidosas mãos.

As peças artesanais eram uma fonte de renda, mas muitas vezes o homem trabalhador ─ que possuía uma doçura no olhar e um enorme coração ─ também distribuía alguns itens da produção para agradar alguém. Ele sentia prazer em confeccionar cada unidade que criava.

Sem esperar qualquer ocasião especial, até as simples flores de algum jardim pelo qual passava nas redondezas transformavam-se em belos buquês com os quais presenteava as filhas: era sua forma singela de demonstrar amor. As recordações desses pequenos arranjos caprichados, que eram montados por ele, ainda emocionam Luciana ao relembrar os mimos feitos tantas e tantas vezes pelo amado pai.

Outra coisa que amava era jogar truco. Por isso, andava sempre com o baralho no bolso "vai que eu encontro um parceiro para uma partidinha, não é mesmo?", pensava ele. Sempre que podia, dava uma ajuda pra um e pra outro e também gostava de contar piadas, de tocar sua sanfona, cantar junto da esposa Abadia (quando ela ainda estava entre eles) e de estar perto de sua maior paixão: a família.

Nascido na pequena Altolândia, um distrito até hoje conhecido como Rincão (nome originário da usina hidrelétrica que forneceu energia para Bambuí e Tapiraí), João foi registrado em Bambuí, cidade vizinha localizada no centro-oeste mineiro, onde ficava o cartório mais próximo daquela época. A região é rica em recursos hídricos, tendo vários córregos e também ribeirões. Ali João aprendeu também a arte da pescaria.

Há quem diga que muitas de suas histórias eram meras "histórias de pescador", mas João jurava de pés juntos que a cicatriz que carregava numa das mãos, juntamente com tantas outras que o ofício com os balaios foi lhe marcando a pele através dos anos, era resultado de uma topada com uma onça-pintada.

Sentado num banquinho no terreiro da casa do Rincão, ele contava ─ convicto e orgulhoso ─ a quem quisesse ouvir: "Esta cicatriz aqui ó, é da unhada de uma onça que eu bravamente espantei!". Não correu da onça, não, ele a enfrentou e conseguiu afugentar o felino, segundo dizia mostrando a marca. Outro fato que sempre aparecia nessas rodas de conversa no banquinho era o episódio envolvendo as abelhas. Luciana relembra: "Ele estava cortando taquara na beira do açude e foi atacado por um enxame. Quando chegou em casa, estava com as costas e o rosto que eram só ferrões; foi preciso pular na água para se livrar de mais ferroadas, nenhum de nós nunca esqueceu disso."

Em seus últimos anos, o Alzheimer já o havia alcançado, mas a perda progressiva da memória parecia brigar com sua capacidade de lembrar tantos causos e músicas que preenchiam sua vida, e acabou gerando algumas situações engraçadas como a que a filha Luciana conta: "Uma vez fomos ao banco e passou na nossa frente uma loira. Ah, na mesma hora ele começou a cantar em alto e bom som: 'Cabelo loiro vai lá em casa passear. Vai, vai cabelo loiro, vai acabar de me matar'. Foi muito engraçado, a agência estava cheia e todos estavam em silêncio. Olhei pra ele e ele começou a dar risada, achando graça também. Essas recordações são únicas, felizes e de um valor inestimável!"

João foi um ser humano maravilhoso que deixou muita saudade, sentimento que aflora ainda mais nas reuniões de família ou aos finais de tarde, que era quando ele pegava sua sanfona para tocar e cantar.

João nasceu em Bambuí (MG) e faleceu em Araxá (MG), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de João, Luciana Maria dos Passos. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 24 de maio de 2021.