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João Fernandes Alonso

1931 - 2020

Costumava brincar dizendo: “Se não tiver arroz e feijão, feijão com arroz serve”.

Ele não era muito de falar sobre sua infância, mas o que se sabia é que nasceu no município mineiro de Muzambinho, que era o caçula de quatro irmãos e que trabalhou na lavoura de café em terras alheias de Minas e do Norte do Paraná até os 18 anos, quando parou para servir o exército.

Mais tarde tornou-se metalúrgico nas montadoras do ABC Paulista, onde trabalhou por mais de trinta anos alternando horários diurnos e noturnos. Assim, só podia fazer alguma atividade com a família quando gozava férias, e foi assim até se aposentar, aos 54 anos, em 1984.

Quando se aposentou, sua rotina era dar uma volta na praça, voltar para casa, cuidar do cachorro e do passarinho, almoçar e tirar um cochilo. Aí acordava, dava outra voltinha e se tivesse que fazer alguma coisa na casa que fosse do seu alcance, ele fazia. Depois, comprou uma chácara no município de São Pedro, em São Paulo, e foi tentar descansar um pouco. Ali acompanhava o crescimento das mudas de laranja, plantava alguma árvore frutífera e alimentava as galinhas, mas teve que interromper essa rotina rural devido a problemas de coluna.

Quando jovem, gostava de jogar bola no time da fábrica. Em alguns finais de semana ia ao clube da empresa levando os filhos. Também gostava de pescar numa represa em São Bernardo do Campo, onde morava; sem paciência para pescar com vara, tomava um pilequezinho e o fazia só com rede de tarrafa.

Era uma pessoa muito educada, seu humor não tinha altos e baixos e nunca ficava bravo. Ao contrário, era uma pessoa muito doce que mesmo com sua pouca instrução dedicava-se ao outro: ajudava muito as pessoas e se tornou uma referência muito forte para a família inteira, que muito o venerava.

João contava com uma autoestima e uma compreensão da vida que não o deixavam reclamar de nada. Gostava de fazer as pessoas rirem. Assim, aproveitava determinadas situações do cotidiano e as transformava em piadas carinhosas. Sempre solícito e prestativo, puxava conversa com o caixa do supermercado, fazia amizade com os vizinhos e, para ele, todo mundo era gente boa ou boa gente!

Adorava se divertir jogando truco com os filhos e cunhados — sem se preocupar em ganhar ou perder —, sempre dentro de casa, nunca na rua ou na praça. Gostava também de fazer um churrasquinho nos aniversários e finais de ano. Quando levado a passear, os passeios não precisavam ser sofisticados: bastava andar sem rumo de carro, desde que estivesse vendo o verde.

Não tinha vaidade com roupa, calçado, cabelo ou comida. Tudo para ele estava bom! Costumava brincar, dizendo: “Se não tiver o arroz e feijão, o feijão com arroz serve”. Não era dado a comilanças e passava o dia todo com o café da manhã, o almoço, o jantar, uma frutinha e pronto. Não perdeu também a mania mineira de gostar de queijo com goiabada.

Era uma pessoa honesta, coerente e verdadeira, que valorizava o nome de família, e que entrava e saía de todos os lugares com a cabeça erguida. Respeitava a esposa e os filhos, nunca levantava a voz e pagava sempre suas contas em dia. Não gostava de fazer nem de ouvir fofocas. Queria as coisas bem corretas, tudo dentro dos preceitos de família, e a verdade para ele sempre foi muito importante. Gostava de afirmar: "A verdade é a melhor coisa, nem que doa”.

Sua simplicidade, paciência, acolhimento, e sua forma de tratar filhos, genros, noras e netos, pareciam ser um ímã, que atraía e alegrava as pessoas. Sabia demonstrar felicidade quando as pessoas iam até ele, dizendo: “Eu não acredito que você veio aqui"!

Quando havia jogo de futebol, sempre torcia para o seu time, o Santos — uma tradição familiar que passou para quase todos os filhos. Se o time ganhasse ficava feliz; se não, não havia motivo para tristeza.

João foi casado com Ana Rubia, sua única paixão, e com ela permaneceu durante sessenta e um anos. Tiveram seis filhos: Margarete, Sérgio, Iara, Rogério, Jussara e Anderson. Iniciaram seu relacionamento no entorno da fábrica onde ele trabalhava. Foi um namoro rápido, mas com todo o protocolo cumprido, no cartório e na Igreja.

Tinha boa relação com os filhos e os forçava a estudar desde pequenos. Ele e a mulher não eram de luxos e exageros. Defendiam que — além da casa e da comida — roupa, calçado e material escolar eram o suficiente. Assim, tornou-se um patriarca respeitado em sua forma de ser. Era alguém que se preocupava em ensinar mais pelo exemplo, do que pelas palavras.

Exerceu brilhantemente o papel de avô dos 11 netos que teve, considerando essa função mais leve do que a de pai, porque eles vieram num tempo em que ele podia brincar, se divertir, sacanear, correr atrás, abraçar e beijar sem ter a preocupação de cuidar. Conheceu cinco bisnetos com os quais também chegou a brincar, mas estes ele já não pôde curtir tanto devido às limitações próprias da idade, que reduziam sua vivacidade.

Gostava da casa cheia de gente para um café e um bom papo. As reuniões de família o deixavam muito feliz. O filho Sérgio, que também foi metalúrgico antes de ir para a universidade, manteve sua proximidade com os pais, passando todos os seus períodos de férias com eles. Apesar de morar em João Pessoa, na Paraíba, não perdia o aniversário dele, que era sempre comemorado com concorridas festas em Campinas, São Paulo, onde reside o resto da família.

João amava as festas juninas e todos os anos os filhos organizavam uma e contratavam pessoas que tocavam moda de viola. Sérgio relata com saudade: "A festa junina, na verdade, era 'julina', porque a gente fazia na data do aniversário dele, 31 de julho. Na de 2018 — ou 2019, não tenho certeza — a gente trouxe um caboclo bom pra tocar moda de viola e você via a felicidade dele dançando”.

"No final de ano o pessoal alugava uma chácara e a gente se reunia com a família. Sempre fomos uma família muito unida Nunca houve briga, nunca houve discussão, nunca houve ressentimento. Assim, a gente ficava: pai daqui, pai dali; come aqui, come ali... E ele tinha os horários dele... Quando ele falava 'tá na hora de eu ir embora’, você tinha que levar ele embora, porque senão ele falava assim: ‘Você vai me levar agora ou você quer que eu pegue um ônibus?'”

No trabalho tinha apenas colegas, porque não era de muitos amigos — os seus melhores eram os da família —, mas todos admiravam sua forma de agir e de escutar. Ele escutava, prestava bastante atenção, e quando não conseguia dar uma resposta a alguma coisa, preferia ficar calado, talvez para refletir um pouco mais sobre a questão.

Sérgio conta que aprendeu com ele a generosidade e a gratidão. "Ele ensinava: 'Agradeça sempre aquilo que você tem e se você puder ajudar ao outro, ajude. Veja quem está precisando de ajuda e ajude'. E isso para ele não era só conselho, era uma prática de vida. Ele era aquela pessoa que gostava de participar. Ele acolhia, esse era o sentido. Então, meus tios, irmãos da minha mãe, também gostavam muito dele. Porque ele ajudava, ele cativava não só os familiares dele, mas os demais também”.

Sérgio homenageou o pai com um belo texto, escrito na primeira madrugada após sua partida:

"Você fechou os olhos e nem disse adeus
Restou somente lágrimas e a saudade que insiste em machucar
Diga o que é que se faz pra poder não ficar assim
Se a dor é companheira, companheira de amor
Poderia doer menos, ao menos no seu fim.

Não amor de ventania, que chega e não anuncia
Nem amor de solidão que desrespeita coração
Mas amor de compromisso, amor de alimento
Daquele que só um pai, sabe o valor de um sustento.

Estou com raiva do mundo, sim tenho brigado com Deus
Sei que sou egoísta, mas quem pudera não ser
Se você não fosse tão doce, tão simples e verdadeiro
Não teria partido ligeiro, feito neblina ao sol
Teria esperado um cadinho, pra uma prosa, um gesto.

Talvez tenha pensado em tudo, de como sairia do mundo
Aproveitaste um momento, um período de lamento e sozinho embora se foi
Sei bem que fostes sorrindo, brincando, falando, fingindo
Dizendo voltar depois."

João nasceu em Muzambinho (MG) e faleceu em Santa Barbara D'Oeste (SP), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de João, Sergio Fernandes Alonso. Este texto foi apurado e escrito por , revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 21 de março de 2022.