1948 - 2020
Depois da aposentadoria, ele parou de usar relógio de pulso e dizia que não queria mais saber do tempo.
João foi um gaúcho amoroso, honesto, calmo, conselheiro, dedicado e dono de uma capacidade enorme de confiar nas pessoas da família. Até mesmo nos momentos desafiadores da vida soube buscar soluções e nunca deixar de amar nas palavras, nos gestos e no olhar. Atos de amor que muitas vezes não havia como explicar.
O Engenheiro Mecânico que trabalhou por muitos anos na indústria petroquímica, formou-se aos 26 anos. Antes disso, aos 23, casou-se com sua Maria. Um casamento que precisou ser apressado, uma vez que os dois já estavam grávidos. Apesar dos rigores morais da família, na ingenuidade dos pais deles, o neto Alexandre ficou como um bebê prematuro e tudo se acomodou. Curiosamente, o segundo filho, Rodrigo, nasceu sete anos mais tarde.
O amor entre João e Maria brotou no ir e vir na rua Riachuelo, em Porto Alegre, onde trabalhavam. Ainda muito novos, ele era office boy numa distribuidora de cosméticos e ela vendedora numa loja de calçados. O jovem alto, magro, de olhos azuis, com costeletas bem definidas e longas, dono de um belo sorriso, que compunha seu rosto juntamente com os traços bem desenhados, acabou conquistando o coração de Maria. E desde então, “eu e Maria”, como ele costumava dizer, levaram a vida.
Rodrigo, o caçula, conta que o casal manteve uma relação que acontecia meio que “aos trancos e barrancos. Eles adoravam debochar um do outro. Ao mesmo tempo, não conseguiam estar longe”, explica.
Dia de Grenal, o clássico de maior rivalidade do Rio Grande do Sul, era ”um pega fogo em casa”. Ele gremista e Maria colorada, assistiam aos jogos juntos. Com direito a muitos xingamentos de parte a parte, de acordo com o desenrolar e o resultado da partida. Maria gritava para comemorar os gols de seu time e quando acontecia o contrário era a vez de João devolver: “Viu, viu, viu sua velha”.
Ainda no campo desportivo, até o ano 1994, João também era fã de assistir a corridas de Fórmula 1. Contudo, com a morte do piloto brasileiro Ayrton Senna, nunca mais o gaúcho quis assistir às corridas da competição.
Na hora das refeições, os sabores da Maria eram apreciados por João. A paixão dele por panquecas era impressionante. Quando ela fazia, João comia uma, duas, três, quatro... Depois de um tempo, quando ficou diabético, tinha recomendação médica de não comer mais ambrosia, doce que ele apreciava muito. Mas de vez em quando não resistia e saboreava a guloseima. Os refrigerantes eram seu ponto fraco. O certo é que, para justificar cada quebra da dieta, João usava o argumento de que “a vida não tem replay, não vou deixar de comer o que quero”.
Uma das maneiras de expressar o seu modo de amar sua Maria acontecia através da expressão de um desejo. Recorrentemente, pedia a Rodrigo que sempre cuidasse da mãe. Nas conversas com o filho, João dizia que ele tinha sido criado para cuidar dele e da mãe.
Com os filhos a relação de João foi marcada por muita confiança e dedicação naquilo que fosse preciso. Um exemplo disso ocorreu numa de suas idas ao Hipódromo do Cristal, em Porto Alegre, num dia em que Rodrigo estava junto com o pai. Como de costume, ele estacionou o carro na pracinha do hipódromo e foi assistir as corridas e fazer suas apostas. De onde estava, João viu o filho cair da roda gigante e, em disparada, correu até o local da queda para socorrer o filho. Nos dias que sucederam o acontecimento, João sempre que podia estava com Rodrigo no colo para dar cuidado e fazer acalantos. Agradecido, Rodrigo reconhece que o pai “foi um santo para me aguentar, pois além disso, teve uma vez em que eu coloquei fogo no carro dele e outra em que quebrei o braço brincando de luta com o pai”.
Alexandre, o filho mais velho, aprendeu a dirigir com o pai. Num bairro mais tranquilo de Porto Alegre, ele dava as lições de direção ao jovem. Enquanto isso, Rodrigo, que era carinhosamente chamado de Gordo, ficava no banco de trás. De vez em quando, João dizia: “Gordo, olha aqui para o pai. Isso aqui é importante para você aprender a dirigir”.
A frase ganhou ares de profecia, quando, num belo dia, a família estava numa praia do litoral, Rodrigo pediu a chave do carro. O pai entregou a chave e disse "vai". Rodrigo regulou o banco,os retrovisores, deu a partida, fez uma volta na quadra onde ficava a casa e na chegada estacionou o carro do pai, de ré, na garagem. João olhava com ar de espanto, sabendo de quantas habilidades estavam em jogo naquela situação; e teve certeza de que o filho seguira à risca suas instruções.
Noutra época, quando Rodrigo já estava mais velho, João e sua Maria viajaram para o litoral com um carro alugado. Na garagem ficou um outro, quatro portas, do ano. Triste por ter ficado para trás e sabendo que o destino dos pais era a cidade gaúcha de Monte Negro, Rodrigo vestiu um terno para aparentar mais idade, pegou a chave do veículo e dirigiu sozinho por cerca de 140 quilômetros de estrada. Espantado com a chegada do filho, João foi logo dizendo: “O que você está fazendo aqui? Você é louco de durigir na estrada sem experiência?". Rodrigo devolveu que estava se sentindo sozinho e resolveu ir ao encontro dos pais. Foi o que bastou para que João desarmasse seu coração, acolhesse o filho e começasse a planejar o que fazer para levar o carro de volta.
Sorrindo, Rodrigo fez questão de ressaltar que a confiança do pai foi "fundamental para que eu seja o que sou hoje” e para satisfazer o desejo dele de que os filhos fossem vencedores na vida, íntegros, honestos e capazes de se colocar no lugar dos outros para servir.
João era extremamente calmo. O copo podia estar na beira da mesa prestes a cair e ele nem se mexia. Era como se não houvesse problema algum e como se ele sempre estivesse dizendo que, se caísse, do chão não passava. O único acontecimento que tirou João do sério em relação a Rodrigo foi o fato de ele ter começado a fumar. “Foi a única vez que ele perdeu a paciência comigo". Pouco depois, o olhar do pai ficou entristecido, pois ficara arrependido de sua atitude. É que João também fora fumante durante algum tempo. Quando foi desabafar com Maria ela disse que o filho estava fumando porque teve o pai como exemplo e João chegou a chorar de tristeza.
Do comum dos dias, com carinho, Rodrigo guarda na memória as cenas de quando chegava em casa. João sorria, olhava como que para saber se estava tudo bem, levantava os braços no convite para um abraço e dizia: “Filhão, tu chegou”... Na sequência dos afetos, os dois trocavam beijos no rosto. Isso acontecia desde quando Rodrigo era bem novo. Alguns amigos dele estranhavam o hábito e perguntavam se ele beijava o pai. Orgulhoso, ele respondia que sim, “no rosto e nas mãos”.
Entre os ensinamentos de João que Rodrigo nunca se esquecerá está o de que “nós estamos por aqui para servir ao outro. Tu, com o seu próprio olhar, não és capaz de se enxergar. Tu precisas do espelho para ver a si mesmo. Deus te fez para olhar para o outro”.
Foi exatamente o que aconteceu com o transcorrer do tempo, o envelhecimento de João e o aparecimento de alguns problemas de saúde. João passou a precisar de cuidados e Rodrigo passou a seguir à risca os pedidos e conselhos do pai. Mesmo depois de casado, ele encontrou tempo para cuidar do pai. Houve época em que João só tomava banho se Rodrigo estivesse em casa para acompanhá-lo, pois tinha receio de sofrer uma queda no banheiro. Se Rodrigo viajava, o banho era à base de lenços umedecidos.
Desse tempo, uma das memórias afetuosas de Rodrigo sobre o pai eram os momentos em que ele se assentava na poltrona "da esquerda", com dois gatos no colo, para assistir televisão. Entretanto, muito rapidamente, a TV falava para ninguém, pois João adormecia.
Por falar em animais, João, católico e devoto de São Francisco de Assis e Nossa Senhora Aparecida, era um protetor dos bichos. Em um determinado período, ele e sua Maria chegaram a cuidar de cerca de 40 animais de estimação, entre gatos e cachorros. Com o detalhe de que alguns eleitos dormiam com eles na cama. Em um dado momento, quando o número de companhias do casal na hora do sono foi aumentando, os dois decidiram dormir em quartos separados.
A retribuição dos mimos e cuidados com os bichos era uma constante. Em um vídeo registrado por Rodrigo, um gato lambia por um longo tempo a cabeça de João. Carinhoso com o bichinho, João perguntava se ele estava fazendo pranchinha em seu cabelo e se iria usar xampu para lavar a cabeça.
Foi no mundo profissional que João viveu um de seus grandes desafios, em decorrência de uma demissão inesperada. Ele precisou e contou com o apoio de Maria e dos filhos. Para reequilibrar o orçamento doméstico, foi trabalhar como gestor de um hotel, na capital gaúcha, num horário que exigia algum sacrifício, pois ele ficou responsável pelo funcionamento da hospedaria entre sete da noite e sete da manhã. Rodrigo recorda que, durante o processo de decisão sobre aceitar ou não a vaga no hotel, o pai quis saber a opinião dele. E o filho disse a João que fizesse o que o coração mandasse. Um pouco depois, o pragmático João respondeu que iria “fazer o que o meu bolso manda”.
Também em função da demissão e do estresse de trabalhar no hotel, João teve um AVC e desenvolveu síndrome do pânico. No enfrentamento da questão, buscando um lugar menor para morar, acabou por transformar o limão em limonada comprando uma casa em Tramandaí, litoral gaúcho. O imóvel tornou-se o lugar de maior relevância para João, que passou a ter uma vida mais tranquila, sempre apaixonado pela casa.
Ele gostava tanto do lugar, que tirá-lo de casa era motivo de briga. Não era tarefa fácil, mas nada que as sobrinhas, Iasmim e Cristiele, não conseguissem. A pedido delas, cerca de três vezes por semana, os três caminhavam juntos até a praia, que fica a seis quadras da residência. “Ele levava as gurias para tomar banho de mar e aproveitava para curtir um pouco a praia".
Neste movimento de busca por uma vida mais tranquila, João, que ao longo da vida gostava de usar relógio de pulso, mudou seu hábito depois da aposentadoria. Justificando a decisão, ele dizia que “não queria mais saber do tempo”.
Mudando completamente de assunto, é importante contar sobre a relação de João com as festas de aniversário. Durante quase toda a vida ele nunca gostou de festas para celebrar seu nascimento. Contudo, às vésperas de completar 72 anos ele decidiu e avisou: “Eu quero um aniversário”. A festa, com direito a bolo, outros quitutes e refrigerante, reuniu algumas pessoas da família. O bom humor e o jeito engraçado dele vieram à tona e fizeram a alegria da noite. É que a nora Fabiana, que é cabelereira, levou umas perucas para que o sogro usasse. As gargalhadas foram muitas enquanto usava o cabelo postiço, fazendo piadas e caretas. Acabou sendo a última festa, uma vez que ele não teve tempo de completar 73 anos.
João segue vivo no cotidiano da casa de Tramandaí que ele tanto amava. Vive também no dia a dia de motorista de caminhão do filho Rodrigo, que segue colocando em prática os ensinamentos recebidos na infância sobre como dirigir. Vive também nas lembranças carinhosas de todos da família “pois só morremos quando não somos lembrados”, acrescenta Rodrigo.
João nasceu em Guaíba (RS) e faleceu em Porto Alegre (RS), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de João, Rodrigo de Almeida Cirio. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 26 de agosto de 2023.