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José Aparecido Pavão

1961 - 2020

Sempre levava café na cama para a esposa. Dessa união, nasceram Leandro e Lucas, suas reticências no mundo.

“Você é meu tudo”, dizia ele, apaixonado, para sua esposa Yeda, que retribuía de imediato o carinho. Mesmo após mais de três décadas de casamento, aos domingos, não perdia o costume de levar café da manhã na cama para a amada. “Foi, sem dúvida, o homem mais maravilhoso que conheci em toda a minha vida”, declara ela.

O casal fazia tudo juntos, como assistir filmes e dar conta das tarefas domésticas. Pavão, como era conhecido, fazia questão de levar e buscar Yeda, todas as noites, na porta da universidade em que era professora. Como ela participava do coral da igreja, muitas vezes ia em várias missas em um único dia, mas nunca sozinha. Pavão estava sempre lá, nas primeiras fileiras.

Ele era um daqueles tipos raros de homens, sabe? Aquele que repara em cada detalhe da esposa, mesmo que ela tivesse cortado dois centímetros do cabelo. “Nada passava em branco, sempre elogiava minha mãe”, afirma o caçula Lucas.

Com seu bom humor habitual, costumava utilizar o adjetivo “utilíssimo” para qualquer aquisição feita por Yeda. “Que utilíssimo enfeite de centro de mesa” ou ainda “é um utilíssimo acumulador de poeira”, divertia-se.

Como queria ficar sempre juntinho dos seus, qualquer desculpa era motivo para reunir a família: montar a árvore de Natal, lavar o carro ou fazer aquele almoço de domingo no capricho. Seguido, é claro, pela expectativa de assistir ao jogo do Coringão na televisão ao lado dos filhos. “Não perdia um jogo. Passamos com ele bastante tempo vibrando, torcendo e xingando juntos”, relembra o primogênito Leandro. Em 2019, inclusive, teve a oportunidade de ver de perto o time de coração em campo na cidade vizinha. Estava muito entusiasmado e em companhia, como sempre, de toda a família.

Gostava de fazer “coisas de marido”. Preguiça era uma palavra que não existia no seu cotidiano. Pulava cedo da cama e ia, faceiro, consertar a maçaneta da porta ou até mesmo pintar uma parede. Certa vez, encasquetou que queria construir um pergolado. Correu toda a cidade para fazer o orçamento, mas como estava muito caro, decidiu assumir a direção do projeto. “Ah, quer saber? Eu mesmo faço esse negócio”, falou ele. Com a ajuda dos filhos, colocou a mão na massa e ergueu o novo cantinho da casa. “Ele adorava desenhar possíveis reformas, comentava que faria faculdade de Arquitetura mesmo depois de ‘véio’”, diz Leandro. Como deve ser, cada cantinho da casa remete a uma história, a uma lembrança da vida em família.

Pavão não foi e nunca será apenas um número. Foi o companheiro de uma vida para Yeda e também um pai amoroso para Leandro e Lucas. Ah, e como era orgulhoso desses filhos! Um engenheiro químico e o outro designer industrial, suas reticências no mundo. “Era nítido ver o seu amor em todos os nossos momentos juntos com os meninos. Por exemplo, na primeira palavra pronunciada, no primeiro dentinho, nas apresentações da escola. Ele sempre foi um pai muito presente”, conta sua esposa.

Além da família, sua maior prioridade e alegria era o trabalho. Este ano, completaria 40 anos como funcionário de uma importante cooperativa agroindustrial. Receberia uma homenagem e tanto em março, mas o isolamento social fez com que fosse adiada. Na época, ficou chateado, já estava com o discurso pronto. Ocupava o cargo de chefe de um dos Departamentos de Sistemas de Tecnologia da Informação e era um verdadeiro entusiasta dessa área. “Lembro de como ele gostava de falar sobre o trabalho, sobre as viagens que ele precisava fazer, os lugares que conheceu e os eventos que participou”, pontua o filho caçula.

A história da família se confunde com a trajetória da cooperativa. Sempre estavam nos almoços e campeonatos de futebol, realizados na associação recreativa da empresa. “Uma vez, eu, ele e o meu irmão participamos de um desses torneios de fim de ano. Na final, terminou 1x0 para o meu time, com um gol marcado por mim. Aí, depois, ele veio brincar comigo, que não era para eu fazer essas coisas”, conta Lucas.

Antes de deixar esse plano e fazer morada junto ao criador, Pavão teve tempo para se apaixonar uma última vez. Dessa vez por Bernardo, seu único neto, que veio ao mundo no início de março e arrasou todos os corações ao seu redor. Dizem que quem é avô é pai duas vezes, e foi isso que aconteceu com ele. Ao receber a notícia, a emoção foi tanta que chorou no trabalho e não conseguiu assistir ao vídeo do nascimento. Na data reservada para receber sua homenagem, planejava apresentar o neto para todos os seus colegas da firma. Aliás, o nome Bernardo só foi decidido definitivamente quando o escutaram na voz do avô. “Como soou bonito! Como me encheu de alegria quando vi o olhar dele ao segurar o Bernardo. Era a expressão de orgulho que acompanhava cada uma das minhas conquistas e do Lucas”, comenta Leandro.

“Se um dia precisarmos passar por dificuldades, dividiremos e superaremos”, escreveu uma vez José Aparecido Pavão. Sua narrativa de vida ainda não chegou ao fim, ela terá novos capítulos todas as vezes que Yeda, Leandro e Lucas contarem algum “causo” sobre ele. As memórias são uma forma poderosa de manter alguém vivo, são o seu legado, a sua continuidade neste mundo.

José nasceu em Campo Mourão (PR) e faleceu em Campo Mourão (PR), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelos filhos e esposa de José, Leandro Vitor Pavão, Lucas Otávio Pavão e Yeda Maria Pereira Pavão. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Gabriela Dedio Jacuboski, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 23 de julho de 2020.