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José Cavalcante Nogueira

1941 - 2020

Conhecia o Brasil em detalhes. Se visse erros em um guia de viagem, mandava uma carta para o editor corrigir.

Partindo do Ceará, na condução de ônibus de viagem, José adentrou no interior desse país e até cruzou fronteiras, fazendo excursões para o Paraguai, Uruguai e Bolívia. Sempre conhecendo jeitos diferentes de viver e fazendo amigos. "Meu pai era muito popular. Ele fazia amizade fácil", conta a filha Maricélia.

Ao voltar de uma viagem, José sempre trazia uma lembrancinha para os filhos. Mas, não era nada dessas bugigangas de turista, ele fazia questão de trazer algo feito por alguém que ele havia conhecido no destino. Maricélia lembra que o pai sempre recebia ligações de pessoas espalhadas pelo país – gente que ele havia conhecido há 20, 30 anos.

Quando não estava na estrada, José estava em casa com a família, contando histórias das suas andanças ou vendo filme de faroeste ou, ainda, lendo guia de viagem. Orgulhoso de conhecer o Brasil em detalhes, e se visse algo que não correspondesse em um guia, escrevia logo uma carta para o editor. "É. Meu pai era do tempo da carta!".

A filha conta que quando eram crianças, o pai chegava em casa, depois de uma longa viagem, pedindo massagem. Algumas vezes, ele ganhava dos filhos um carinho gostoso nos pés. Mas, outras vezes, quando ele deitava no chão para esticar as costas, os filhos logo vinham pular em cima dele. E ele nunca reclamava. "Meu pai era um homem forte, amoroso, que não demonstrava muito os sentimentos falando, mas agindo".

Das memórias infantis, as mais emblemáticas são de um pai protetor. "Todas as férias, que sempre eram na época das chuvas, viajávamos para visitar nossa família no interior do Ceará. Em uma dessas viagens, o rio Jaguaribe estava muito cheio e as águas cobriam a ponte que deveríamos atravessar. Eu olhei para ele com aquela cara de 'e, agora?', mas meu pai falou: 'Não se preocupe. O papai vai dar um jeito'. O meu pai era essa pessoa, que fazia com que eu me sentisse segura. Eu nunca senti medo de nada", narra Maricélia.

Quando veio a aposentadoria, José logo arranjou um jeito de se manter em movimento – na estrada, é claro. Tornou-se motorista de bandas de forró! Foi ele quem, por muito tempo, levou os grupos musicais Mastruz com Leite, Canários do Reino e Karapebba para as turnês.

O tanto que Seu José rodou esse país até parece que viveu mais de uma vida. Com tanta experiência, gente loroteira não tinha vez com ele. Quando vinha alguém com papo mole pro seu lado, logo ele dizia: "Olhe! Eu tenho é 200 anos, viu?". Em outras palavras, ele estava dizendo: "Eu sou experiente. Já vi e vivi muito".

José nasceu em Barro (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 78 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Maricélia Fernandes Cavalcante. Este texto foi apurado e escrito por Michele Bravos, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 7 de maio de 2021.