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José Otoniel Gouveia

1948 - 2020

A porta de sua oficina era parada obrigatória para conversas e brincadeiras.

Foi no trabalho que o desenrolar da sua vida transcorreu e ganhou ares de eternidade. É possível dizer que José era apenas torneiro mecânico, mas esta afirmativa não revelaria que o ofício dele era fundamental para o funcionamento de muitos engenhos e casas de farinha na cidade paraibana de Areia.

Filho de seu Antônio e dona Lindalva, Tota, como era carinhosamente chamado, começou a trabalhar aos 12 anos. Em função da necessidade e dos valores culturais de seu tempo, o estudo era pouco valorizado e os filhos começavam a trabalhar bem cedo. Assim, ele aprendeu os segredos de tornear com o pai e foi percebendo a importância da concentração, do cuidado com a precisão das medidas e com a segurança na fabricação de engrenagens, pinos, polias e outras peças.

Com a morte do pai, José passou a contribuir com o orçamento da casa materna, ajudando dona Lindalva no cuidado com os irmãos. Seguiu trabalhando na oficina do seu Manoel "Torneiro" durante muitos anos e só saiu de lá com a aposentadoria um pouco forçada, uma vez que a empresa foi fechada.

Como amava o que fazia, com as devidas indenizações recebidas por tantos anos de trabalho, Tota comprou uma garagem e, mesmo aposentado, montou sua própria oficina. Muito respeitado na região, seguiu fabricando peças para máquinas das casas de farinha, dos engenhos de cana de açúcar, de cortar capim e de abate de frangos. Isso sem falar nos serviços de solda e desempeno de tachos.

José acordava bem cedo e às seis da manhã já estava limpando e organizando a oficina. Depois de passar o dia concentrado nos afazeres, às cinco da tarde fechava as portas. Com uma clientela grande, sempre ficavam reparos das peças das máquinas para o dia seguinte.

Do trabalho realizado nas propriedades rurais de Areia decorria um ou outro fato marcante. José era muito prestativo e atencioso com a clientela. Procurava atender a todos com agilidade, pois sabia que máquina parada era um transtorno. Muitas vezes não cobrava por pequenos reparos, que chamava de “serviço besta”. Em sinal de agradecimento, Tota ganhava frutas da época, levando para casa laranja, jabuticaba, caju, manga. Noutras vezes ganhava galinha, farinha de mandioca, massa de mandioca e goma de mandioca. Com os presentes, a esposa Marilene preparava sucos saborosos, bolos e tapioca, que eram muito apreciados por José e todos da família.

Por falar na Marilene, os dois se casaram quando José tinha 28 anos; sempre muito unidos, formavam um casal harmonioso. Desse amor vieram Walneid, Waldiney, Lindalva e Vanessa. Foram quarenta e cinco anos de um relacionamento tranquilo e afetuoso.

Quando Tota queria falar algo com ela, só chamava: "Marilene!" E ela deixava o que estivesse fazendo para ir saber do que se tratava. Se fosse para sair, ela não perguntava para onde estavam indo. Simplesmente sentava-se na garupa da moto e seguia com José. Houve vez em que ela até deixou panela queimar no fogão para atender ao chamado do marido.

Marilene afirma que José foi “mais que um esposo, foi um companheiro de toda a vida. José Otoniel era maravilhoso, um esposo encantador e amado por todos. O tempo que passamos juntos foi especial demais, jamais esquecerei".

Por sua vez, a filha Lindalva tem boas recordações do pai desde a infância. Saudosa, ela recorda do tempo em que tinha cinco ou seis anos e todos os dias ficava na porta de casa esperando o pai voltar da oficina. “Papai gostava muito quando ele chegava e eu estava usando um vestidinho amarelo, que ele achava bonito”. Também está na lembrança a imagem do pai pedalando sua bicicleta e trazendo o saquinho de pão.

Com os filhos crescidos, a porta da oficina, que ficava relativamente próxima de sua residência, era palco de muitos encontros com os familiares. Lindalva, conta, sorrindo, que quando passava de carro por lá, a parada era obrigatória. José deixava o que estivesse fazendo para conversar com a filha e brincar com os netos que estivessem no veículo. O papo rendia e muitas vezes só era interrompido quando um outro carro vinha trafegando pela rua e precisava passar. Se alguém de casa passasse caminhando e olhasse para dentro da oficina sem dizer nada, Tota logo perguntava “Que foi?”, numa estratégia para puxar conversa.

Dos cinco irmãos, teve uma relação mais próxima com Antonieta, a mais velha, que ele considerava uma segunda mãe. Nos momentos em que precisava decidir alguma questão, buscava os conselhos dela. E a opinião de Antonieta tinha um peso marcante na decisão. A mesma proximidade aconteceu com Oziel e Uciel. Já com Tânia e Denise sempre houve muito respeito, mas não foram tão próximos assim.

Brincalhão, Tota referia-se aos netos e bisnetos como “Papa Angu”. No passar dos dias, fazia questão de lhes fazer pequenos agrados, comprando lanches, balas e pipoca. Com a neta, Laura, fazia parte da brincadeira os momentos em que José cantava uma canção curtinha, que ele mesmo inventou, que diz assim “Ô Laurinha, vou beliscar sua bundinha”. E ela, entre gargalhadas, corria do avô!

Nas horas de descanso e lazer, José, que na infância não teve aparelho de televisão, gostava de assistir a desenhos animados. Era fã do Pica-pau, do Pernalonga e do Papa-léguas. Nos dias de jogos do Fluminense, seu time do coração, ele também ficava colado na TV. Ansioso, Tota chegava a fazer movimentos como se estivesse chutando a bola em lances que pudessem ser decisivos.

Mais um detalhe marcava os momentos em que ele assistia a seus programas favoritos: ninguém podia passar na frente do aparelho. Quando isso acontecia, ele se irritava e ficava bravo com quem se esquecera da norma criada por ele.

José também gostava de sair para almoçar fora com a esposa e os filhos nos finais de semana. Noutros momentos, iam juntos aproveitar os dias de sol e tomar banhos de mar. Muitas vezes ele e a esposa Marilene foram aproveitar as praias de João Pessoa em ônibus fretados.

Tota teve também um outro companheiro inseparável: o cãozinho batizado de Jerry. Pequenininho e bravo, alegrava os dias de José, que dava boas gargalhadas quando via a nervosia do cão. Todos os dias por volta da hora do almoço e no final da tarde, o cãozinho ia para a varanda esperar o dono. Dali em diante, Jerry estava sempre no mesmo ambiente da casa onde Tota estivesse. À noite dormia perto da cama dele. Nas viagens, sempre que possível, o companheiro ia junto.

Um fato importante torna necessário falar novamente da oficina do José. Depois do falecimento do marido, Marilene decidiu que a oficina não seria fechada e nem vendida. Assim, Edmilson, marido da filha Vanessa e conhecido como Juca, mantém a oficina aberta e em funcionamento. A fachada recebeu pintura nova e para dar ares de eternidade e marcar a presença de José naquele espaço, ganhou um letreiro: Oficina do Tota.

José Otoniel segue vivo nas boas lembranças que deixou na memória dos filhos, dos sete netos e dos quatro bisnetos. No funcionamento dos engenhos e casas de farinha de sua cidade natal. Na expectativa do cão Jerry, que segue esperando por ele na varanda. E nos momentos em que os familiares passam pela porta da Oficina do Tota.

José nasceu em Areia (PB) e faleceu em Campina Grande (PB), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Lindalva Gouveia Nascimento. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 3 de dezembro de 2021.