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José Vieira Sampaio

1932 - 2020

Em suas mãos tudo se transformava. Na companhia das ferramentas, passava o tempo consertando e contando histórias.

A destreza e agilidade manual de José já era notada em sua atividade profissional como Técnico de Laboratório da Fundação Nacional de Saúde — o FUNASA. Conhecido por ser um homem de poucas palavras e com poucos amigos, José “adorava contar as histórias relacionadas ao tempo que trabalhou em Amazonas, na cidade de Manacapuru, realizando testagem para febre amarela e malária”, doenças que nessa época eram fatais, o que reforça o caráter de urgência e importância daquele trabalho, segundo comenta a enteada Camila.

Dono de uma memória formidável, José destacava-se por sua honestidade, sabedoria, inteligência e teimosia. Também tinha como marca uma frase que sempre dizia: "O veím tinha razão". Aposentado como servidor público federal, passou a dedicar mais tempo para fazer pequenos consertos. "Tudo ele gostava de consertar, tudo para ele era utilizado. Se ele encontrasse um pedaço de ferro na rua, dali ele tentava fazer alguma coisa e nas mãos dele nada se perdia, tudo ele criava”, diz Camila.

A mesa virava a sua bancada e junto das suas ferramentas, José passava seu tempo consertando, contando histórias e ensinando. "Eu aprendi muito porque quando ele ia fazer os pequenos consertos, ele me chamava e me dizia 'pega a chave de fenda, essa é a chave de grifo, esse é o alicate'. Então, de certa forma, eu fui aprendendo a conhecer as ferramentas", lembra emocionada a enteada.

Assim nasceu a relação paternal entre Camila e José. Ela tinha apenas três anos quando sua mãe foi viver com José e afirma que ele "foi o pai que conheci, foi o meu pai; algo que foi construído entre nós, uma relação muito forte".

Além da enteada, José teve cinco filhos do primeiro casamento: Marisa, Marijane, Antônio José, Márcio e Marcos. Apesar do distanciamento que a separação eventualmente gerou, Camila sempre procurou reunir todos os filhos com o pai nas datas comemorativas e em ocasiões especiais.

A busca pelo bem-estar de José era aprendida com a mãe, Maria Neuma. Camila ressalta como a relação dos pais era baseada em muito cuidado, zelo e carinho. "A esposa se sentia a protetora, sempre estava pronta para cuidar da alimentação". Com seu jeito caseiro, José preferia ficar em casa e Maria Neuma o acompanhava; um era a companhia do outro. Ele sentado no sofá e ela ao seu lado na rede. E "ficavam ali juntinhos, até ele cochilar e minha mãe ir preparar o mingauzinho dele para dormir. Era uma relação de muito respeito, minha mãe tinha um cuidado muito grande com ele", recorda a enteada.

Mas a paixão de José pelos consertos levava, às vezes, o casal a renhir. Segundo Camila, José vivia furando as paredes da casa e, por isso, ouvia a esposa exclamar "oh, homem impertinente, oh homem para bagunçar a casa!". Ela também conta que "a relação dos dois era de passar o dia todo arengando, mas era uma arenga boa, era aquela arenga de um ficar mexendo com o outro, mas no carinho, era isso que acontecia com eles".

Além das reformas e restauração dos aparelhos domésticos, José apreciava os concertos musicais, adorava ouvir orquestras e tocar flauta. A enteada lembra da emoção de José no dia em que lhe deu um DVD de música clássica de André Rieu. Era a mesma emoção de quando escutava os programas nordestinos nos domingos pela manhã, momento em que tocava sua flauta e ensinava música de Luiz Gonzaga para a neta Maria Luíza.

Com o tempo, a neta Maria Luíza passou a ocupar o lugar da mãe, Camila, na bancada de ferramentas de José. E assim como fez com a enteada, José repetia os ensinamentos com a neta. "Ele ensinou muitas coisas para minha filha, ensinou o nome de todas as ferramentas que ele tinha. Aí ele dizia, 'essa aqui é chave de fenda, aqui é alicate, aqui é ferro de solda', e ela pequeninha já estava aprendendo. Ele dizia, 'Maria Luiza traga a chave de fenda' e ela já levava".

Assim, a neta cresceu aprendendo e ouvindo as histórias do avô. Segundo Camila, Maria Luíza "era a confidente dele. Ela sabe todas as histórias dele, ela tinha paciência para ouvi-lo". A relação entre neta e avô era muito forte. Certa vez, quando Maria Luíza era pequeninha, o avô fez uma ligação imitando a voz de Papai Noel que ficou na memória de todos.

Camila lembra também de quando a filha colocou um nome no carro do pai. "Ele comprou um fusquinha e, na época, esse fusquinha era todo caidinho, um fusquinha velhinho, de 1975 e a minha filha colocou o nome de Perebinha. Ele gostava muito de colocar minha filha para passear e eles saiam nesse Perebinha. Quando ele não pode mais dirigir, ele disse que não vendesse o Perebinha porque era o presente da minha filha de quinze anos".

A cumplicidade e o amor entre José e Maria Luíza marcaram os últimos momentos da vida dele. Camila conta que quando o pai ficou doente, antes de internar, Maria Luíza saia todos os dias para cuidar do avô, administrar suas medicações, medir a glicemia e a temperatura. E mesmo no hospital, José sempre chamava pela neta.

Com a certeza de que sua vontade seria respeitada, José partiu dias antes do aniversário da neta que guarda na memória do coração o aniversário de dez anos, no qual o avô adentrou o salão de beleza tocando "parabéns" em sua flauta.

José nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela enteada de José, Camila Pontes Carvalho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Rosimeire Seixas, revisado por Walker de Barros Dantas Paniágua e moderado por Rayane Urani em 20 de setembro de 2021.