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Lígia da Luz Gischkow

1932 - 2021

Ela conseguiu ser tudo aquilo que sua neta esperava de uma avó.

Vanessa, uma neta amorosamente ligada a avó Lígia, no momento em que soube de sua partida utilizou-se das próprias palavras e sentimentos para expressar o amor e a importância dos aprendizados que com ela teve:

"Vó, eu nunca quis tanto que tudo aquilo que tu me contavas sobre como é “passar pro lado de lá” (como tu mesmas dizias) fosse verdade como quero hoje, dia da tua partida.

Espero que tu despertes tranquilamente naquele hospital que tu comentavas que é pra onde a gente vai primeiro (porque, mesmo não tendo mais nada a ser curado fisicamente, a gente precisa emocionalmente desse processo de transição). Tô te imaginando agora abrindo devagar teus olhinhos e te vendo deitadinha em uma cama, em uma sala beeem comprida, mas muito iluminada por janelões altos, por onde entram raios de sol. A temperatura é amena, e a paz pairando no ar é imensa. Tu, esperta como sempre, imediatamente te dá conta de onde tu estás, e te entregas, suspirando aliviada, permitindo que toda essa energia incrível tome conta de ti. Tem duas enfermeiras de branco ao pé da tua cama. Elas te observam de forma muito doce, sorrindo. Tu sorris pra elas de volta. Vocês se entendem pelo olhar, e nada mais precisa ser dito.

Tem várias outras caminhas como a tua ao teu redor, cada uma com uma pessoa. Todos são “novatos”, recém-chegados, como tu. Alguns ainda estão tentando entender o que está acontecendo. Mas não tu! Tu já sacaste tudinho, e, porque sempre foi independente e nunca gostou de “dar trabalho” pra ninguém, já estás louca pra ser “liberada” pra te levantares, ansiosa pra ir ao encontro dos teus amores que chegaram antes de ti. Tu percebes quanto verde tem do outro lado dos janelões, e imaginas quão lindo deve ser lá fora. Fica super animada! Daqui, e através de uma das enfermeiras, eu te mando um “caaalma, Cocóta, uma coisa de cada vez, logo logo tu vais estar com todo mundo! Tu tens, agora, a eternidade pela frente!”

Percebendo que tu vais ter que ter só um pouquinho mais de paciência até a alma se ambientar, tu, como sempre, apelas pro humor, e fala pras enfermeiras (na linha do que tu sempre comentavas com a gente): “Finalmente cheguei. Eu já estava achando que vocês tinham esquecido de mim! Viram? Eu sabia que não ia precisar passar pelo umbral!” (seguido de uma daquelas tuas gargalhadas gostosas)

Cocotinha, eu não estava preparada pra esse dia. Pra mim, tu parecias eterna. Mas tu andavas mesmo bem cansadinha, e enfim descansou. Eu, que estou fisicamente tão longe de ti, agora, te sinto perto como nunca. Te sinto em todos os lugares ao redor de mim. Te sinto nas folhas da árvore que estou vendo pela minha janela nesse momento. A melhor vó que eu poderia ter. Que fazia comidinhas gostosas. Que foi e sempre será a minha referência pra assuntos místicos e espirituais. Uma companhia leve, um refúgio pra onde eu me recolhia quando queria desacelerar. Uma mulher vanguardista, e com um coração muito puro. Além de Linda, claro (Renato tá contando que eu vou envelhecer que nem tu, olha a responsabilidade que tu me deixaste!). Tão bela que até foi “princeza” – com Z e com direito a faixa! (aliás, não esquece de fazer umas “figas” aí se tu perceberes que tem umas velhinhas invejando a tua beleza, como tu fazias aqui e nos matava de rir!)

Eu te amo tanto, mas taaaanto, que quanto mais eu escrevo aqui, mais eu percebo como escrever é em vão, porque nenhuma palavra nem texto bonito podem expressar o que eu te demonstraria imediatamente com um abraço longo e apertado (tipo aquele que eu te dei antes de viajar). Soube agora do teu descanso e (não sei por que sou assim, mas, pra variar,) comecei a ser inundada por palavras, por isso precisei colocar pra fora. Agora, vou parar por aqui, porque sinto que já liberei o meu blablabla interno (que estava mais pra amor engarrafado, mas tirei a rolha e liberei pro universo!)

Fico, a partir de agora, na paz do silêncio da tua presença, pra sempre."

Lígia nasceu em Porto Alegre (RS) e faleceu em Porto Alegre (RS), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Lígia, Vanessa Gischkow Garbini. Este tributo foi apurado por Rayane Urani, editado por Vera Dias, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 4 de maio de 2022.