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Mara Célia Nunes de Almeida

1978 - 2021

A rapidez de seus partos era motivo de brincadeiras; bastava um piscar de olhos e os filhos estavam em seus braços.

Uma vida de curtos quarenta e dois anos para o que ela sonhava e planejava. Uma história breve e iluminada como rastro de estrela que cai do céu. Uma trilha que, no seu tempo de acontecer, deixou marcas, lembranças, amores e uma ausência que para muitos não cabe em palavras, mas se expressa no silêncio e na emoção dos que conviveram e amaram Mara Célia.

A filha caçula de Garibalde e Tulipa, também foi mãe amorosa e cuidadosa de Letícia e Felipe. Irmã de Mara Lúcia, Mara Isa e Marcelo. Sem contar as boas relações que colecionou entre os familiares e amigos.

Mara nasceu em Ribeirão Preto, São Paulo, em 16 de agosto de 1978. Ficou um curto período de tempo na cidade onde trabalhava o pai que era ferroviário. Contudo, o local onde passou a maior parte da vida, desde muito nova, foi Uberaba, Minas Gerais. Nas fotos de criança, Mara Célia, por seus modos e corte de cabelo, se apresentava com fortes traços indígenas. Segundo contava a mãe, há registro de que indígenas fazem parte da árvore genealógica da família.

Com apenas um ano ela já morava no triângulo mineiro. Foi nesta época que teve início uma relação intensa e de muita amorosidade com a irmã Mara Lúcia, que cuidava da irmã para que Dona Tulipa pudesse ficar fora de casa durante o dia. A mãe cuidava da construção da nova casa da família, pois seu Garibalde seguia trabalhando em Ribeirão Preto. A presença de Mara Lúcia foi tão intensa na vida de Mara Célia que na infância a segunda considerava a primeira como sua outra mãe. O amor recíproco também era verdadeiro, uma vez que Mara Lúcia mantinha e mantem um sentimento especial pela irmã que, de forma carinhosa, apelidou de Lili.

A maneira como foi escolhido o nome dela é digna de nota. No período do nascimento de Mara Célia, o irmão Marcelo precisou ficar na casa do tio Gutemberg. Depois do nascimento da menina, ele e a esposa Leosana levaram Marcelo para conhecer a irmãzinha. Ele olhou para a irmã e disse que não voltaria mais para casa. No dia seguinte, em nova visita, mudou de opinião e disse que se o nome dela fosse Marcela ele voltaria para casa. Os pais resolveram então que o nome da caçula seria Mara Célia. Em parte para agradar Marcelo e noutra parte para manter a tradição, já que o primeiro nome das irmãs mais velhas também é Mara. Tudo pacificado, Marcelo voltou para casa.

Como filha caçula, Mara pôde ter coisas melhores na comparação com o que ganhavam os filhos mais velhos. É que a condição financeira da família pouco a pouco melhorou. Mara Célia teve bonecas que se mexiam, falavam. Outras eram enormes. Na escolha dos materiais escolares teve oportunidade de usar itens incrementados. Ela e Marcelo, os dois mais novos, puderam fazer o ensino médio em escolas particulares, diferentemente das duas irmãs mais velhas Mara Isa e Mara Lúcia.

Seu Garibalde sempre foi muito apegado a Mara Célia. Sem que ninguém soubesse, quando pequena, ele a levava a um restaurante próximo a casa da família. Mas como todo segredo um dia pode ser revelado, os irmãos acabaram descobrindo o passeio secreto. E todos riram muito, principalmente pelo fato de Mara Célia nunca ter dado nenhuma pista.

Quando Mara ingressou no ensino fundamental, a professora notou que muitas vezes a aluna ia até a lousa ver os escritos. A educadora comentou sobre o fato com dona Tulipa que a levou ao oftalmologista. O exame identificou uma miopia e os primeiros óculos tinham seis graus em ambos os olhos.

Certa vez, Mara Célia estava deitada, e por isso sem os óculos. A irmã Mara Lúcia entrou no ambiente e começou a falar com ela. Prontamente, Lili disse que era “para eu dar os óculos dela porque nem me enxergava” conta a irmã. Muitos anos depois Mara Célia esclareceu que o pedido era pura brincadeira.

Com o passar do tempo a miopia progrediu e Mara Célia chegou a usar óculos de 14 graus. Contudo, sua capacidade de enxergar e compreender outras dimensões da vida em nada foram afetadas por isso. Espiritualista, em alguma medida, graças à sua formação religiosa no espiritismo kardecista, sempre foi uma pessoa sensível e aberta a conhecer outras perspectivas dessa existência. Em Uberaba, chegou inclusive a participar como voluntária das câmaras arcturianas físicas, uma terapia com assistência de outros seres planetários, juntamente com a irmã Mara Lúcia.

Cientista social, teve a sensibilidade de olhar e acolher os movimentos que transcorreram ao seu redor. Depois do bacharelado em ciências sociais, estava cursando pedagogia para aprimorar sua prática como professora de sociologia na rede estadual de ensino. Frequentava, por prazer, vários eventos acadêmicos e cursos de aperfeiçoamento. Se identificava com os temas: educação inclusiva, direitos sociais, política...

Generosa e companheira em todos momentos, estava sempre atenta às pessoas. Forte emocionalmente, sabia como ninguém enfrentar tudo que a vida oferecia e cobrava, tentando perceber o melhor de tudo e de todos. E o mais importante, sempre disponível a ajudar a quem precisasse. Certa vez, a irmã Mara Lúcia foi passar uma temporada na casa de Lili durante a recuperação de uma fratura no joelho. A estadia durou o tempo necessário e para acolher os pedidos da irmã, Mara Célia ia buscando utensílios e objetos na casa de Mara Lúcia. A foto que registrou o momento da saída de Mara Lúcia na volta para casa foi um momento de diversão para Lili. Ela, os filhos e alguns sobrinhos posaram para a fotografia com muitas sacolas, caixas e outros objetos.

No percurso até tornar-se mulher adulta, Mara Célia foi sendo uma pessoa simples e sem frescuras. Quando Mara Lúcia comprava algum produto para si ou para a filha e considerava que Mara Célia também pudesse gostar, comprava mais um. Por isso, as duas tinham muitas roupas iguais.

Seu figurino era marcado pelo despojamento e simplicidade. No cotidiano, gostava muito de calça jeans, camiseta e tênis. Essa era uma marca tão forte, que o sobrinho Iatã diz que a tia será lembrada “todas as vezes que eu ver uma camiseta básica e um tênis esportivo, seu uniforme oficial”. Nos momentos especiais, se aprontava toda para enfeitar ainda mais o sorriso largo que trazia no rosto.

No miúdo da vida, Mara Célia era brincalhona, e não perdia a oportunidade de fazer piada ou ironizar acontecimentos. Essa característica ficava evidente nas trocas de mensagens via rede social com a irmã Mara Lúcia onde, recorrentemente, compartilhavam conteúdos que faziam rir. Na rede ela também gostava de temas ligados a direitos sociais e animais. Teve uma época que ela inventou de tirar foto das pessoas dormindo e se divertia muito com isso.

Com seu jeito, Mara Célia cultivou muitas amizades. Erika, amiga de longa data, lembra de quando na infância conheceu a vizinha que morava na casa da frente. Desde então, sentadas na porta, todos os dias as duas se encontravam para uma boa conversa. Mesmo estudando em escolas diferentes, nunca deixaram de brincar, rir, contar novidades, e interagir nas redes sociais.

Mara Célia ficou muito triste quando soube que Erika precisaria passar um ano em Brasília. Antes da partida, fizeram um pacto de trocarem uma carta por mês, o que de fato aconteceu. Noutra época, nos feriados, elas combinavam de se encontrar em Araxá. Com a redução das oportunidades de encontro e o advento do celular, as mensagens pela rede social eram o lugar de conversas regulares. Saudosa, Erika diz que são muitas as lembranças da amiga tão especial.

Já Beatriz, amiga durante dezoito anos, tem bem frescas na lembrança as memórias do jeito doce e gentil de Mara Célia que encantava a todos que a conheciam. Ela diz que a amizade sincera e duradoura surgiu logo que se conheceram no colégio. A relação das duas foi tão intensa e amorosa que os filhos de Mara a chamam de tia.

O convívio com animais também marcou a vida de Mara. O carinho e o cuidado com cães e gatos abandonados eram uma constante. Ela os acolhia, levava para casa e cuidava. Sempre conseguia abrigo para aqueles com os quais não podia ficar. Como a irmã Mara Lúcia, em função de contusões no joelho, não conseguia levar seu cão para passear, era Lili quem fazia isso todos os dias. Cabe ressaltar que o cachorro de Mara Lúcia viveu apenas 4 meses depois do falecimento de Lili. Numa leitura carinhosa e leve do acontecimento, a irmã diz que “deve ter ido ficar com Lili”.

Sempre que podiam, as irmãs faziam as refeições juntas. Depois do passeio com o cachorro, quase sempre as irmãs pediam comida ou Mara Lúcia preparava a refeição. Lili apreciava as moquecas, os bobós de camarão e as feijoadas preparadas pela irmã. Noutras vezes Mara Célia fazia gostosas macarronadas de frango, quibes, galinhadas, lasanhas e levava para a casa da irmã. Das comidas que pediam, as que ela mais gostava eram pizza, lanches e filé à parmegiana.

Na passagem de ano de 2019 para 2020 as irmãs comemoraram juntas, com uma bacalhoada regada a vinho. Já na pandemia, quando não podia haver aglomerações, a chegada de 2021 foi celebrada pelas duas com a companhia da sobrinha Larissa.

As lembranças afetivas dos sobrinhos Larissa e Iatã também passam pela culinária. Inesquecível o delicioso pão francês com molho de cebolas e tomate da tia Mara Célia. Num ambiente sempre alegre, imerso em boas conversas, ela preparava o molho e servia para si mesma uma porção na qual ia molhando os pedaços de pão. No último Natal celebrado por ela, conversou longamente por chamada de vídeo com o sobrinho Iatã. A prosa teve como pauta desde grandes coisas da vida até como cada um assara o peru.

Outra boa lembrança de Larissa é do tempo de infância. Ela gostava muito de ler o diário de Mara Célia. Com o caderno, cheio de anotações e colagens, a menina perdia a noção das horas e via nessa leitura um grande passatempo. Na avaliação de Larissa, a tia não se incomodava com o fato, provavelmente por achar que a sobrinha ainda não soubesse ler direito.

Por sua vez, no quadro de memórias de Iatã estão as inúmeras caminhadas pelo bairro. Era o momento em que aproveitavam para colocar o papo em dia. Muitas vezes, já tarde da noite, Mara Célia esperava o sobrinho virar a esquina e pedia para que mandasse mensagem quando chegasse em casa.

A tia também mandava editais de concursos para o sobrinho advogado, a quem recorreu numa situação peculiar. Iatã conta que Mara Célia foi mesária em muitas eleições, mas, no último pleito que ocorreu durante a pandemia e devido à necessidade de cuidar dos pais, ficou preocupada em contaminá-los com Covid-19. Ela pediu ajuda ao sobrinho para redigir seu pedido de dispensa. Iatã recorda que juntos chegaram a pensar estratégias caso o pedido fosse negado. Com o bom humor de costume, ela disse "qualquer coisa vou e na volta tomo banho de mangueira no quintal, antes de entrar pra casa".

Bernardo recorda que a tia jogava pokemon com os filhos e sobrinhos. “Tia Lili se animava sempre a jogar as coisas com a gente” e trazia sua alegria e cuidado para perto de todos.

Como já dito, o cuidado com os pais na velhice foi outra necessidade que Mara Célia também entendeu como sua. Dona Tulipa tinha uma demência vascular agravada por um acidente. Mesmo nos momentos em que ficava hostil, Mara compreendia a situação e seguia com os cuidados. Dava banho, cuidava do horário dos remédios e fazia o que fosse necessário. Cuidava também de seu Garibalde, portador de Alzheimer, colocando-se sempre disponível para atender as demandas dele.

Sobre os filhos, é preciso voltar no tempo antes mesmo do nascimento de Letícia e Felipe. A facilidade de Mara Célia na hora do parto era tamanha que acabou virando motivo de piada na família. No nascimento de Letícia, o trabalho de parto deve ter durado meia hora. No de Felipe, nas últimas semanas a irmã Mara Lúcia levou Lili para ficar na casa dela. É que quase todo dia era necessário ir ao hospital para ver se já estava na hora do parto. No dia do nascimento de Felipe, ela aguardava a chegada do médico, e avisou à enfermeira que já estava tendo o bebê. Como Mara Célia estava muito tranquila, a enfermeira não acreditou. Um pouco depois, ela fez uma careta de dor e num piscar de olhos estava com Felipe em seus braços.

Na saída da maternidade com o recém-nascido Felipe, Mara Célia foi, digamos, uma grande acrobata e mostrou reflexos invejáveis. Ao descer do carro, tropeçou no cinto de segurança e caiu, mas com instinto materno e notável destreza, foi ao chão sem que o segundo filho sofresse sequer um arranhão.

Letícia conta que desde que “comecei a me entender por gente sempre fui muito grudada com a minha mãe. Era difícil ela estar em um lugar que eu não estivesse e vice-versa. Com o passar dos anos fui crescendo e ela sempre me acompanhou em tudo, em todos os momentos da minha vida, nos bons e, mais ainda, nos ruins. Sempre esteve pronta para tudo, sempre deu o melhor de si para cuidar de mim e do meu irmão.” Ela acrescenta que a mãe é um exemplo de mulher, de ser humano e diz que queria ter um pouquinho de cada qualidade da mãe. Lamentando o fato da mãe ter falecido tão cedo, Letícia prefere guardar os muitos momentos da mãe sempre atenta ao crescimento e desenvolvimento em todos os sentidos dela e do irmão Felipe. Com ar de brincadeira e dirigindo-se à Mara Célia, a filha resume que “fomos criados bem debaixo da sua saia. Você ensinou tudo para nós dois, menos a viver sem você.”

Mara Célia segue viva nas lembranças do amor maternal, das conversas, risadas, conselhos, tudo que ela sempre desejou para os filhos Letícia e Felipe. No trabalho de conclusão de curso de sociologia, onde escreveu sobre a memória dos ferroviários, motivada pelo fato de seu Garibalde ter trabalhado na ferrovia a vida toda; na lembrança de todos que conviveram com ela e num momento de saudade, se lembrarão de como a simples presença dela conseguia tornar um ambiente agradável; na conclusão do processo de aquisição da tão sonhada casa própria que ela financiou, mas não teve tempo de conhecer; no abraço recebido pela prima... num centro espírita da cidade de Conquista, em Minas Gerais, quando contou que está bem e sendo cuidada pelos antepassados Sinhô Mariano e Tia Herondina...

Só saudades...

Mara nasceu em Ribeirão Preto (SP) e faleceu em Uberaba (MG), aos 42 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela irmã de Mara, Mara Lúcia Nunes de Almeida. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 27 de abril de 2022.