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Marcos Alexandre Henrique Lopes

1958 - 2020

Seu ritual matinal era gravar um vídeo de bom dia para a filha, enquanto fazia café e dançava pela cozinha.

A alegria sempre andou no encalço de Marcos. Cresceu em Nova Iguaçu, mas os pais, Joaquim e Aurora, mudaram-se mais de dez vezes, na tentativa de melhorar as condições da família com vários empreendimentos. Com os irmãos, Paulo e Sandra, na meninice arrochada em termos econômicos, não faltou brincadeira de rua, bicicleta, bolinha de gude e pelada de futebol. Aos fins de semana, desfrutavam da infância à beira mar, na praia em Grumari.

Esse jeito leve o acompanhou até a vida adulta. Não esperava festa para usar as melhores louças e toalhas de mesa, construiu uma rotina que o permitia ter tempo livre para apreciar os sons dos pássaros, jardinar, desenhar, pintar e tantos outros hobbies, como criar desenhos industriais - área em que também trabalhou - e obras. Era advogado autônomo na área imobiliária e dizia que preferia ganhar menos e desfrutar mais das maravilhas do mundo.

Assim, as manhãs já começavam com festa na casa e na alma de Marcos. Ele escolhia uma música bonita, colocava a água do café para ferver e dançava pela cozinha afora. Também gravava um vídeo de bom dia para a única filha, Gabriela, a fim de mantê-la próxima, mesmo que distante geograficamente. Os dois conversavam todos os dias e ele sempre a surpreendia com a doçura típica de quem acorda disposto a apreciar as pequenas grandes alegrias da vida.

Marcos ainda gostava de filmar o pôr do sol, as aves e outras miudezas bonitas e cotidianas, sempre com uma bela trilha sonora ao fundo. "Ele dizia que a flexibilidade de horário e o tempo livre dele não tinha preço que pagasse.
Sempre falava isso, que preferia ganhar menos e ter uma vida tranquila, do que se matar de trabalhar pra ganhar um montão de dinheiro, porque dessa vida se leva as experiências e não os bens. Daí, como tinha essa rotina de trabalho mais flexível, sempre encontrava tempo para um passeio de bicicleta na orla de Niterói, ou pra tomar uma água de coco", conta a filha Gabriela.

Ele era o rei das piadas sem graça também, o que a filha adorava e considerava a marca registrada dele. O apelido em família era Gruguzela, fruto de uma piada interna enquanto ele, a esposa e a Gabi assistiam "Up, Altas Aventuras". Era época de Copa do Mundo, aquela realizada na África do Sul em que a vuvuzela era usada. Eles cismaram que a ave que aparecia em Up chamava-se Gruguzela.

O advogado artista também declarava seu amor para a esposa e Gabriela com desenhos e recadinhos. Aliás, desde que conheceu a mulher, Fátima, ele usava seus dons para mostrar tudo que sentia. Afinal, não foi tão fácil conquistá-la. Marcos contava que viu Fátima antes mesmo de descer do carro quando foi a um show com amigos em comum. Eles curtiram Baby, Chico Buarque, Elba Ramalho, Alceu Valença, Djavan, Ângela Ro Ro, João do Vale e Caetano Veloso, em comemoração ao Dia do Trabalhador.

No final do evento, Marcos ficou pra trás do grupo maior e ela foi buscá-lo. Foi quando ele conseguiu um momentinho com ela para conversar e começar o flerte. Depois foi muito esforço na tentativa de conquistá-la. Mandava muitas cartas escritas à mão, com desenho e texto, era um artista com as palavras. Mas, depois da conquista, não se desgrudaram mais, viveram o restante da vida juntos. A música do casal é de um dos cantores do show em que se conheceram, Leãozinho, do Caetano Veloso. Marcos continuou romântico após engrenar o namoro com Fátima. Ela estudava em Petrópolis, ele aparecia de surpresa e sempre enviava lindas cartas.

Além de ser o grande amor de Fátima, tornou-se o grande amor da filha Gabriela. "Ele era meu melhor amigo. Na adolescência discutíamos porque éramos muito iguais, dois esquentadinhos, depois amadureci e ele tornou-se um super companheiro, desenvolvemos uma cumplicidade muito bonita. Ele adorava viajar comigo. Tínhamos um milhão de piadas internas, nos entendíamos só de nos olhar", afirma.

Gabriela conta que o pai largou tudo para ficar com ela duas vezes. A primeira quando estava em Brasília, muito triste após terminar um relacionamento de cinco anos. Os dois assistiam filmes à noite, saíam para tomar uma cervejinha e o pai amoroso cozinhava para a filha.

Da segunda vez, ele pegou o avião e foi para a Floresta Amazônica cuidar da moça. Ela trabalha com preservação florestal da Amazônia e Cerrado; depois fez um trabalho em Rio Branco, sendo que uma etapa dessa missão já havia sido iniciada no Mato Grosso. Ele tornou-se o motorista dela, ajudava a marcar as entrevistas e o que mais Gabriela precisasse, só para que ela pudesse descansar um pouco. Mais que ações práticas, ele levou seu bom humor, alegria e amor de pai para revigorá-la.

"Eu apresentava pra ele as coisas regionais, tipo castanha de baru, cuscuz nordestino, tambaqui, cupuaçu. Ele se amarrava em conhecer coisas novas, mas não gostava do gosto de quase nada", conta aos risos Gabriela.

Marcos morria de orgulho da profissional que Gabriela era, comentava com os amigos e familiares sobre o trabalho da filha com brilho nos olhos. Ela também aprendeu com o pai alguns dos hobbies preferidos dele: pintura de quadros e de aquarelas.

Em 2019, ano em que ela mudou-se para a Holanda, Marcos organizou uma viagem para Portugal no período do Natal. Foi uma operação complexa porque ele queria proporcionar uma experiência para a sogra, avó de Gabriela. Ela já contava 83 anos, mas ele fez tudo com amor para que a viagem ser inclusiva e acessível. Alugou carro, cadeira de rodas, empurrou pra lá e pra cá, e levou todo mundo em Fátima por causa da religiosidade. Depois, eles encontraram-se com Gabriela em Santiago de Compostela. Aliás, ele se preparava para fazer o caminho, andava 20 quilômetros por dia. O plano de fazer o Caminho de Santiago agora é de Gabriela.

Ele era assim: não media esforços para ver quem amava feliz, além das viagens e declarações ajudava a todos com seus dons e conhecimentos jurídicos, nunca reclamava.

Já na pandemia, Gabriela passou três meses com o pai e a mãe em Niterói. Ela conta que aproveitou muito a companhia deles. Depois disso, não se viram pessoalmente. "O desafio agora é que a gente siga cultivando a sua forma leve de ver a vida, especialmente nesse contexto tão duro. Que tenhamos a força e a coragem de seguir em frente, sem perder o compasso, semeando o amor que ele nos deu ao longo da vida", diz.

"Para quem ler esse tributo e acreditar em algo maior, peço uma oração para que o meu querido pai seja abençoado e encontre um caminho de luz".

Marcos nasceu em Niterói (RJ) e faleceu em Niterói (RJ), aos 62 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Marcos, Gabriela Russo Lopes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Talita Camargos, revisado por Emerson Luiz Xavier e Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 1 de julho de 2021.