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Marcos Ernesto Chaves

1955 - 2021

Por sua intensidade, quando o que queria dizer não cabia nas palavras do dicionário, Ernesto inventava o próprio vocábulo.

Em casa, no trabalho, na vizinhança era sempre do mesmo jeito. Ernesto, como de fato era chamado por todos, era sempre comunicativo, cativante, engraçado, alegre, divertido, determinado e comprometido.

No comum dos dias, nada escapava ao olhar atento e perspicaz de Ernesto que em muitas situações transformava o que acontecia em piadas. A filha Camila acrescenta que desde pequeno “o meu pai era terrível e um piadista. Fazia graça com tudo”. Noutros momentos, dedicava àqueles com quem convivia e amava apelidos, também engraçados, a partir da associação que fazia com alguma característica do apelidado. A escolha dos apelidos variava também de acordo com a ocasião e o que ele sentia no momento em relação ao destinatário. Assim, para a mesma pessoa existiam apelidos usados em situações em que ele se sentia chateado, ou quando queria demonstrar carinho.

Gesticulava o tempo todo usando o rosto, as mãos e porque não dizer o corpo para complementar o significado da narrativa que fazia. Muitas vezes, na mesa do café da manhã, a empolgação dele ao contar algum fato era tanta que derramava café e espalhava migalhas de pão para todo lado. Assim, quem convivia e ouvia suas travessuras não conseguia ficar sem dar boas gargalhadas e desfrutava de um cotidiano sempre alegre e engraçado. Na cozinha, por exemplo, a tradicional maionese que ele adorava era “marionese”. Em muitas ocasiões, quando concordava com alguma coisa, dizia “ever”, querendo dizer “é verdade”. Quanto às camisas listradas, que adorava usar, referia-se a elas como “cor sim, cor não”. A filha Natália comenta sorrindo que “dava para criar um dicionário do Ernesto”.

No modo de vestir, o bom humor e o jeito marcante de Ernesto também se faziam presentes. A filha Camila, na tentativa de definir o estilo peculiar do pai, diz que “ele era um tipo Agostinho Carrara”, numa alusão ao personagem da série humorística de uma rede de televisão brasileira. Para que se tenha uma ideia do quão pitoresco era o figurino de Ernesto, por algum tempo, quando ia à praia, ele usava uma sunga laranja fluorescente. Quando alguém questionava a cor da peça ele respondia, com seu jeito marrento: “Deixa eu com a minha sunga coral”. Outro exemplo foi a cueca de dólar que ele cismou de comprar. Em casa, todos riram muito da estampa e perguntaram por que ele tinha comprado essa cueca. Sem titubear, Ernesto respondeu: “Deixa eu usar para ver se fico rico. Tanta gente coloca dólar na cueca, por que não posso usar uma cueca de dólar?”.

Outra característica marcante de Ernesto era sua musicalidade. Desde muito novo, aprendeu a tocar violão e gostava muito de cantar. Ao longo do tempo, seu repertório foi agregando músicas de artistas como Djavan e Gilberto Gil. Camila tem lembrança da presença do violão do pai em casa desde os tempos em que ela era criança. A música dá a oportunidade de contar uma situação bem inusitada. É que Ernesto, além de tocar e cantar, também compunha suas canções. Certa vez, juntamente com o amigo Roberto, ele participou de um festival de músicas. A composição dele não agradou muito à plateia e os dois acabaram vaiados. Em vez de ficar abatido e triste, Ernesto passou a fazer piada com a situação. Com alguma frequência contava o caso e antes de cantar a canção, sorrindo, dizia que “foi com essa que eu fui vaiado no festival”. Na sequência, mantendo o sorriso no rosto, cantava.

Voltando cerca de trinta anos no tempo, é possível dizer, sem medo de errar, que foram esses e outros traços de Ernesto que encantaram Eliane, a escolhida por ele como companheira, que ao longo dos anos ganhou o apelido carinhoso de Lili. O primeiro encontro — e o surgimento da paixão de Ernesto por ela — aconteceu num bar onde Eliane cantava. Ernesto pediu a ela que cantasse uma música para ele. Antes de cantar, ela perguntou qual era o nome dele que se apresentou como Marcos. E Eliane devolveu que “então essa música é para você, Marcus”. E cantou a música “Fascinação” de Fermo Dante Marchetti. Naquele instante, os dois, que estavam noivos, se apaixonaram um pelo outro e decidiram terminar seus relacionamentos.

Foram seis meses de namoro e trinta e sete anos de casamento. Desse amor, vivido sempre no Rio de Janeiro, inicialmente em Niterói, vieram Camila, Natália e Marcos Ernesto Júnior, o Marquinhos. Três vidas consideradas na família como um milagre, uma vez que, segundo os médicos na época, Eliane não poderia ter filhos. E, anos depois, o neto Mateus, filho de Marcos, que foi outra paixão do avô dedicado.

Contido na expressão de seus sentimentos, Ernesto não era muito de beijos e abraços. Contudo, era comum que em casa, sem nenhum motivo aparente, os dois dançassem ao ouvir alguma canção. Noutros momentos, ele tocava seu violão e os dois cantavam juntos. Para quem teve o privilégio de contemplar essas cenas fica a lembrança bonita e encantadora dos dois saboreando esses momentos.

Houve também desafios enfrentados juntos. Em decorrência de diabetes e da hipertensão, Eliane acabou desenvolvendo uma falência dos rins e passou a realizar três sessões semanais de hemodiálise. Nesta época o casal que morava em Teresópolis mudou-se para Cabo Frio, pois somente conseguiram que o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) fosse realizado em Araruama, na Região dos Lagos. E assim, nos dias de sessão, os dois enfrentavam uma hora de estrada na ida, mais quatro horas de realização do procedimento e outra hora de viagem na volta. Por mais redundante que possa ser, importante dizer que Ernesto vivenciou a experiência de aproximadamente sete anos consciente da importância do cuidado e buscando dar leveza à situação. Durante o período em que ainda trabalhava, o leva e traz de Eliane era dividido com os filhos, mas depois que se aposentou era sempre ele que fazia companhia a sua Lili.

Outro acontecimento muito bonito foi a viagem que fizeram à Europa, mesmo durante a realização das sessões de diálise. E aqui uma informação de utilidade pública, passada pela filha Camila. Diante do desejo de Eliane de realizar a viagem, todos da família ajudaram a descobrir que há uma parceria entre o governo brasileiro e os governos de Portugal e da Itália para que brasileiros, pacientes do SUS, realizem hemodiálise durante períodos de permanência naqueles países. E assim, felizes, Ernesto e sua querida Lili puderam passar uma temporada no continente europeu tendo Portugal e Itália como base para manter em dia os cuidados com a saúde de Eliane. Entremeadas às sessões de diálise, além de localidades portuguesas e italianas, conheceram também regiões da França e da Espanha.

Impossível não contar mais um acontecimento bastante engraçado associado à viagem. Entre os planos de Ernesto estava a compra de um terno italiano para usar em situações importantes de sua vida social. Pois bem, assim ele fez. Com um detalhe que somente foi percebido após o retorno ao Brasil: na etiqueta do terno comprado em Veneza, ele encontrou a informação de que a roupa fora fabricada na China. Para driblar a frustação, Ernesto fez muita troça de si mesmo dizendo que “se fosse para comprar coisa da China eu comprava aqui mesmo no Saara”. Importante esclarecer que Saara é um local no centro do Rio de Janeiro, onde comerciantes populares vendem produtos importados daquele país. No dia do casamento da filha Camila, lá estava Ernesto, orgulhoso, feliz e elegante com o alinhado terno azul.

O amor de Ernesto e Eliane era tanto, que quando Lili faleceu durante a pandemia ele ficou muito triste. Ele não era de falar muito sobre o assunto, mas passou a não se alimentar bem e emagreceu. Para aliviar a sensação de perda e vazio, Ernesto decidiu retirar as fotos de Eliane da casa e tinha uma certa dificuldade em ficar no quarto de casal da casa em Cabo Frio. Mesmo durante um dos períodos mais graves da pandemia no Brasil, de vez em quando, ele saía de casa e dizia que precisava “dar uma volta para tomar um ar”.

Para falar do papel da paternidade na vida de Ernesto, precisamos retroceder ainda mais na linha do tempo. O filho de Dona Djanira não conheceu o pai biológico. A mãe, por razões que não cabe dizer aqui, assumiu a responsabilidade de criar o filho sozinha. Mesmo não tendo podido experimentar a presença cotidiana da figura paterna, Ernesto foi um pai presente, atento e dedicado. No seu jeito mais contido no que se refere a abraços e outros gestos para expressar seu carinho pelos filhos, ele fez o que pôde pela felicidade e educação deles.

Quando os três filhos eram crianças, Ernesto gostava de presenteá-los no Natal. Como relembra a filha Camila, "tudo que a gente comentava que queria ele dava um jeito de comprar”. Por sua vez, a filha Natália, num bom humor que lembra o pai, conta que “a maior burrice da nossa vida foi descobrir que Papai Noel não existia. Porque depois disso, quando a gente pedia um presente caro, ele dizia que naquela hora o papai não podia dar”. O certo é que o hábito de presentear, juntamente com a esposa Eliane, produziram muitos sorrisos nos três filhos e depois no neto Mateus.

Outra memória de infância cheia de encantamento foi narrada por Natália. Ela conta que todos os dias ela e os irmãos eram acordados pela música do filme Branca de Neve e os Sete Anões. Ernesto programou o aparelho de televisão para ligar sozinho e começar a reproduzir o vídeo no trecho da música. E em vez da letra original que diz “eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou”, Ernesto ia até os quartos das crianças cantarolando “eu vou, eu vou, pra escola agora eu vou”. Como não poderia deixar de ser, de tanto ouvirem a melodia, Camila, Natália e Marquinhos tomaram uma certa antipatia da música e do filme.

Na adolescência dos filhos as demandas passaram a ser o leva e busca em festas. Nesta época a família residia em Teresópolis. Em função do trabalho, diariamente Ernesto precisava acordar muito cedo e voltava tarde para casa, pois precisava se deslocar até o centro da capital carioca onde trabalhava. Mesmo assim, sempre que necessário, independentemente do horário de início e fim da festa, o pai levava e buscava os filhos e amigos deles nos locais das festas.

Foi também nessa época que Ernesto e Eliane ganharam uma espécie de filho. É que Felipe, apelidado de Chulipa, viveu um momento bastante desafiador da vida. E com o jeito acolhedor e prestativo do casal, o rapaz, que então era namorado de Camila, foi acolhido na casa da família. Felipe dividiu o quarto com Marquinhos até seu casamento com Camila.

Na idade adulta, a presença companheira de Ernesto nunca faltou para nenhum dos filhos. Nos altos e baixos tão comuns na vida de todos nós, eles sabiam que independentemente do que acontecesse podiam contar com o pai.

A história profissional de Ernesto também contém momentos muito impressionantes. Formado em Contabilidade ele trabalhava em um banco público do Rio de Janeiro. Com a privatização do banco, ele precisou se mobilizar para garantir a segurança financeira da família. Na época eles moravam em Niterói. Tinham um apartamento financiado pelo banco e havia o risco de demissões no pós-privatização. Foi então que ele decidiu vender o apartamento, quitar o financiamento e comprar uma casa em Teresópolis.

Depois da mudança, diariamente, ele descia e subia a Serra, pois no início continuava trabalhando em Niterói e depois no Centro da capital carioca. Na pressão do banco para que ele pedisse demissão, Ernesto chegou a ser transferido para uma agência bancária na Ilha de Paquetá. Durante este tempo, todos os dias eram quatro horas para ir e outras quatro no retorno para casa. Determinado e forte, ele perseverou e trabalhou no mesmo banco até se aposentar.

Entre os colegas de banco, como não poderia ser diferente, Ernesto era muito querido. De tal maneira que o grupo de rede social criado por eles foi batizado de “Arnesto voltou!!!”. Depois do seu falecimento, ligações e mensagens deles para a família trouxeram um pouco de alento diante da perda tão sentida.

No tempo em que trabalhou no caixa dos idosos, a conversa com os velhinhos na boca do caixa era garantida. Atencioso, carinhoso e divertido, ele ouvia e procurava atender às demandas desses clientes. Quem estava na fila e já o conhecia não se queixava quando ocorria uma demora um pouco maior. Afinal, sabia que o mesmo cuidado era dedicado a todos os velhinhos que chegassem ao caixa do Ernesto.

Durante toda a sua intensa vida, Ernesto reservou espaço para momentos de diversão e lazer. Situações em que buscava recarregar suas energias para seguir com sua rotina bastante exigente. Um de seus prazeres era sair andando pelo comércio local. No trajeto, conversava com motoristas de táxi, caixas, faxineiras, gerentes e empacotadoras dos supermercados, a atendente da loja de empadinhas da esquina, atendentes e caixas da padaria, com o pessoal da farmácia. Durante as viagens que fazia, com seu jeito sociável e caloroso, que cativava as pessoas, muitas vezes, ele comprava lembrancinhas para cada um dos que comumente conversava nessas voltas pela vizinhança. Invariavelmente, quando retornava, trazia sacolinhas de compras. Do supermercado, com produtos que eventualmente estivessem em promoção. E da farmácia, como conta Camila, “com remédios que ele dizia que tinha comprado pra ter em casa e que quando precisasse já tinha”.

As viagens eram outro momento de muito prazer para Ernesto e a família. Foram muitos acampamentos e passeios pelo Brasil e exterior. Durante o período em que Natália morou no Uruguai, a paixão de Ernesto era ficar hospedado num hotel bem próximo ao cassino. Ele gostava tanto de jogar, que resistia a outros passeios e só concordava em fazer com alguma insistência.

A paixão pelo Clube de Regatas Flamengo também proporcionava momentos de lazer juntamente com o filho Marquinhos. Dia de jogo do Mengão era dia de ir ao estádio ou de fazer churrasco e tomar cerveja gelada. A calopsita da família, batizada de “Menguinho”, vivia no ombro de Ernesto que, com a persistência, ensinou o pássaro a cantar o hino do clube carioca. Para que se tenha ideia de como ele era um torcedor fervoroso, antes de ir ao hospital para buscar tratamento do quadro de Covid-19 ele fez questão de assistir ao jogo do Flamengo.

O cuidado com animais de estimação também proporcionava a Ernesto momentos de descontração. Depois que a família passou a morar em Teresópolis, foram chegando cachorro, gato, pato, porquinhos-da-índia, tartaruga e peixes e, como já dito, o adorado Menguinho.

Por fim, antes de terminar, é fundamental contar que Ernesto foi cremado. O desejo surgiu depois do falecimento de Eliane. que também foi cremada. Desde então ele começou a dizer que “não queria ninguém chorando no buraco dele e que, quando morresse, queria que jogassem suas cinzas no mesmo lugar onde foram deixadas as dela”. O local escolhido foi a Prainha de Arraial do Cabo, lugar que gostavam muito de frequentar durante a vida. E assim, num canto da praia deserta em função das restrições impostas pela pandemia, em dias de sol, onde só se ouvia o barulho das ondas, a poeira dos dois foi lançada nas águas límpidas, verdes e brilhantes do mar.

Ernesto, o homem que colecionava moedas e notas antigas, e era apaixonado por relógios, segue vivo no incessante e terno movimento das marés, onde foram deitadas suas cinzas e as da sua amada Lili. No cheiro da camisa do Flamengo usada para assistir o último jogo do time do coração, guardada sem lavar e com muito carinho por Marquinhos. Quando o mesmo Marquinhos toma um porre e parece incorporar o pai. No jeito descontraído e leve como as filhas falam do pai apesar da grande perda. E nos momentos em que alguém da família faz uma piada e o outro diz “baixou o Ernesto aqui”.

Marcos nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Teresópolis (RJ), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelas filhas de Marcos, Camila da Rocha Chaves e Natália da Rocha Chaves. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 7 de fevereiro de 2023.