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Maria das Graças Cária Sartini

1951 - 2020

A morte deixou uma dor que ninguém pode curar... Mas o amor de Cária deixou memórias que ninguém pode apagar.

Não sabia como começar este texto, mas senti uma necessidade enorme de dividir minha dor e gratidão. Saí do Colégio Santo Antônio há 22 anos, mas só há pouco tempo, num encontro de comemoração de 20 anos de formatura e vendo carinhas de alguns professores nas redes sociais, tive noção da importância dos três anos que passei ali dentro.

Até então tinha ficado registrada só a importância do que eu digo do colégio que me “ensinou a pensar” e que me deu minha amiga mais presente em todos os meus processos.

Hoje me lembrei do dia em que fui fazer a seleção com um colega inseparável da minha escola de origem. Saímos juntos de um colégio de uma congregação holandesa, menorzinho, desses de bairro, que abrigam gerações de famílias. Passei três anos lá, depois de vir do interior com a clássica carinha de assustada de quem sai de um pequeno universo para cair neste “mundão de Deus”.

O desejo de ir para o famoso e temido Colégio Santo Antônio foi atendido pelos meus pais seguido da frase constante: “Se não der conta, pode sair”. No dia da prova de seleção, eu e esse amigo de jornada, companheiro diário de ônibus, nos deparamos com um portão vermelho imenso e paredes não menos cinza do que o céu de onde caía uma chuva fina e gelada que anunciava nossos novos tempos. Eu saí tremendo, mais gelada que a chuva e branca igual à folha de papel que eu segurava nas mãos. Ele tranquilo, como sempre, como se tivesse acabado de acordar, saiu se espreguiçando. Hoje é um brilhante cirurgião plástico, e já trabalhamos algumas vezes juntos, sem querer, por ironia da vida, que insiste em não separar essa dupla.

E adentramos juntos aquele universo dos “colégios grandes da Savassi”, eu que nunca tinha passado para além do Parque Municipal. Tipo João e Maria num bosque denso jogando migalhas de pão pelo caminho.

Nesse reencontro festivo com os colegas reconstruí meu laço afetivo com aquele lugar. Retomei o quentinho da cantina da Pedra, o doce das balas da banca do Jacaré, o olho entreaberto às 7 da manhã, o primeiro namorado, as festas de 15 anos, a aula de educação física lá no colégio Arnaldinum na sexta à tarde, precedida pelo “almoço” no McDonald's, a calça marrom esquisita que virou meu pijama por anos e a aventura hercúlea de quatro ou cinco professores acompanhando uma turma de uns 50 adolescentes em uma viagem de 20 dias, de ônibus até o Uruguai. Só hoje tenho noção da loucura que deve ser acompanhar esse exército com hormônios explodindo!

Ontem o coração, que voltou a passear nesse universo tão amoroso, retomou o contato com colegas tão queridos e se aproximou de outros hoje não menos queridos, acordou triste. A face da Cária estampada com um sorriso reluzente seguida de uma mensagem de adeus me implodiu. Todo o calor que eu agora sinto quando algo me remete ao colégio Santo Antônio virou um sentimento de orfandade e de revolta ao mesmo tempo. A Covid agora levara um dos meus. Nós, tantos filhos do colégio profissionais de saúde, filhos da Cária, lutando arduamente nos hospitais contra essa doença cruel, ficamos um pouco órfãos. Lutamos pela vida de quem nem conhecemos e perdemos um dos nossos.

Um sentimento de injustiça me tomou. Muitos de nós se infectaram nesse combate e perdemos uma de nossas referências mais queridas. Dói e me despertou muita revolta. Peço desculpas a Deus por isso, mas sou humana. Ver a porta da escola toda tomada de flores, faixas, manifestações de alunos, mensagens de agradecimento dos filhos demonstra toda a força que essa perda tem para nós.

Cária me ensinou a duelar com o carbono, nos reconhecíamos nos nossos jeitos de falar com os olhos. Ontem me lembrei de tudo. Do jeito que ela movimentava as mãos, de quando encostava na parede em silêncio esperando que a tropa elétrica se acalmasse, dela indo embora de carro com o marido (que também foi levado, uma semana antes, pela mesma doença) e da sua elegância que só a simplicidade e a discrição são capazes de moldar. Cária era isso.

Ontem me dei conta de que a carreguei em cada aula minha dissecando uma reação química, lutando contra uma solução tampão, interpretando exames de gasometria no meu dia a dia, fazendo as pazes com o pH e outros conceitos tão abstratos que só uma gigante que carregava a pedagogia no colo seria capaz de ensinar. Ela armou uma menina assustada contra os fantasmas que saíam daquelas equações. E eu, não com sua maestria, consegui espalhar alguns pequenos guerreiros por aí. Pedacinhos de Cária que nem a conheceram.

Ontem, com sua partida, ela renasceu em mim, e agora, junto com todas as minhas armas, seu sorriso de despedida naquela foto vai junto comigo na contínua luta pela vida de pessoas que eu nem conheço.

Com amor, Ana Luisa.

Maria nasceu em Belo Horizonte (MG) e faleceu em Minas Gerais, aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela ex-aluna de Maria, Maria das Graças Cária Sartini. Este texto foi apurado e escrito por Ana Luisa Gonçalves Magalhães, revisado por Otacílio Nunes e moderado por Rayane Urani em 25 de outubro de 2020.