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Maria de Lourdes Gonçalves

1948 - 2021

Visitava a Casa de Deus três vezes por semana, religiosamente; e dizia "Tudo posso Naquele que me fortalece!"

A igreja era tudo para Maria de Lourdes. Evangélica, amava os louvores cristãos da cantora Aline Barros e persistia em ouvi-los ainda que as limitações físicas tentassem lhe negar essa oportunidade. Isso porque Maria perdeu a audição já aos últimos anos de sua vida. Ela usava um aparelho para escutar, mas não gostava da ideia — nem parecia precisar: era como se, sozinha, já fosse capaz de interpretar o mundo inteiro com o olhar.

Foi por enxergar o mundo de maneira ainda mais atenta que Maria de Lourdes desenvolveu sintomas de depressão. Queria viver a maior parte do seu tempo em casa, recordando momentos. "Ela gostava muito de lembrar de quando ficávamos reunidos na cama dela, todos juntinhos", conta Rosiney, uma das filhas. "Ficávamos por horas rindo e falando da vida, de todos os seus momentos especiais", completa a também irmã de Ronaldo, Elaine, Regiana e Ricardo. Cinco filhos nos quais a maternidade de Maria de Lourdes não tinha fim, mas sim um começo; transbordava igualmente para os sete netos, xodós e testemunhas do amor da avó à vida.

Esse amor, vez ou outra, insistia em escapar pelos dedos. A mineira, que morou em São Paulo mas logo quis retornar à sua terra natal, era apaixonada em apanhar café. Também trabalhou por muito tempo como costureira, deixando em cada fio de linha as suas marcas de beleza, delicadeza e vaidade. Reconhecer isso nela mesma lhe arrancava sorrisos naturalmente. Gostava de ouvir que sua juventude a fazia aparentar ser irmã de Rosiney. A filha, por sua vez, ainda não se conforma com uma relação limitada à maternidade: "ela era minha rainha!", corrige. "Nos ensinou a sermos fortes e lutarmos pelo que acreditamos. Somente a saudade que sinto é o que pode dizer o tamanho do meu amor por você, Mãe."

Também seria a Rainha se fosse uma carta. Amante do jogo de truco nas reuniões de família, foi ela quem embaralhou e deu as cartas pela última vez, como se soubesse o efeito que sua falta produziria. Que embaraço é essa saudade misturada com dor que ficou por cima da mesa... Nessa partida, todos os jogadores vão perder. Mas de quantas vitórias se faz uma Maria de Lourdes?

Não há quantidade que defina com precisão essa Mulher dos Sentidos. Olhava com o coração, ouvia com a memória e sentia o sabor das palavras ditas com o paladar de quem experimentou viver intensamente cada uma delas. Respirou pela última vez como se prendesse dentro de si toda a fonte de inspiração do mundo. Agora, tateando uma dor que logo será só saudade, a sua presença invade os sete buracos da nossa cabeça. E inspira... respira... truco!

Maria nasceu em São José da Barra (MG) e faleceu em Alpinópolis (MG), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Rosiney Alves Gonçalves Marques. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Irion Martins, revisado por Débora Spanamberg Wink e moderado por Rayane Urani em 14 de fevereiro de 2022.