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Maria de Lourdes Lopes do Nascimento

1940 - 2021

No quilombo, sua casa era chamada de "O Recanto", porque ali muitos se reuniam para um cafezinho no fim de tarde.

Mulher de fé, de alma grandiosa, uma supermãe, amiga, torcedora do Paysandu e do Palmeiras, e entusiasta da Educação, assim é lembrada a Dona Mariínha, que cresceu e viveu em Itacoã-Miri, território quilombola, às margens do Rio Guarapiranga, no município de Acará, nordeste paraense.

Mãe super protetora, não media esforços para manter a família unida. Sempre arrumava um jeito para deixar a casa cheia. A cada encontro, uma oportunidade ímpar para transmitir, através do seu exemplo, valores fundamentais como a generosidade, o amor ao próximo, a retidão, o respeito e a solidariedade.

Movida por uma energia e alegria de viver singulares, a sagitariana Mariínha, por muito tempo foi uma das dançadeiras de samba de cacete. As saias rodadas com estampas florais, embaladas ao som do carimbó e das cantorias que retratavam a comunidade, arrancavam-lhe as risadas mais gostosas. Ela fazia parte da tradição dessa terra cujo direito de posse e domínio foi conquistado em 2003, fruto da resistência e da luta centenária.

Mariínha nunca foi de conter as emoções, sempre as deixava rolar pelo rosto, tal como no dia em que presenciou seu caçula (dentre os filhos vivos), ser o primeiro membro da família a conquistar o diploma do ensino superior e, anos mais tarde, o mestrado. Emoção também vivida nos ingressos da filha, do neto e da nora na universidade pública.

Sempre que podia, assistia aos jogos da seleção brasileira de futebol, vôlei e basquete, além das partidas em que seus times do coração entravam em campo. Confiava no talento e no esforço dos jogadores, mas assistia às competições sempre com os dedos em figas, para dar-lhes mais sorte.

Tinha consciência de que as conquistas da família eram o reflexo de muitos anos do trabalho no campo ─ onde por muito tempo produziu mandioca, arroz, feijão, milho, açaí, biribá, dentre outros ─, mas como católica fervorosa, não hesitava em atribuir muitas delas à fé depositada em Nossa Senhora de Nazaré, padroeira dos paraenses.

Noveleira declarada, mergulhava nos enredos das telenovelas. Era fã do cantor Carlos Alexandre, e dentre as canções, a predileta era “Timidez”. Habilidosa e dona de vários talentos, costurava com muito zelo e, em muitas ocasiões especiais, vestiu-se com as roupas que ela própria confeccionara. Paparicar netos e netas era sua mania predileta e o principal motivo para navegar pelas águas do Rio Guarapiranga rumo a Belém.

O seu amor de mãe transcendia os limites do núcleo familiar. Quem nasce e vive em um quilombo e valoriza sua ancestralidade, sabe que "uma mãe é pra cem filhos!", parte de um ditado popular que ela sempre citava. Itacoã-Miri, o Recanto, como era chamada a sua casa, era ponto de encontro que acolhia moradores e amigos para prosas regadas ao saboroso cafezinho do fim de tarde. E, quem ali chegasse necessitando de “um pedaço de pão” nunca saía com fome.

Falar e escrever sobre Mariínha dá gosto. É tarefa que não cansa! A coleção de memórias positivas é uma expressão fiel do legado dessa grande mulher quilombola para sua família e para toda a comunidade.

Maria nasceu em Acará (PA) e faleceu em Acará (PA), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Maria, Marcio Nascimento. Este texto foi apurado e escrito por Fabrício Nascimento da Cruz, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 10 de maio de 2021.