Sobre o Inumeráveis

Maria de Nazareth Baptista de Carvalho

1934 - 2021

Envolvida com o crochê diante da TV, sempre confundia as notícias, misturando comemorações com manifestações.

Filha mais nova de uma família de doze mulheres, Maria de Nazareth ganhou seu nome pela devoção da mãe á Nossa Senhora de Nazaré. Por conta disso, as atividades religiosas do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, eram acompanhadas por todos da casa com emoção e reverência. O pai, no entanto, desde o nascimento preferia chamá-la de Marisa. Escolhas à parte, a menina sempre se reconheceu pelos dois nomes. A hereditariedade abençoou a prole com longevidade, pois Nazareth foi a única a falecer antes de completar seus 90 anos e sem tomar nenhum remédio. Viveram a adolescência e juventude regadas a festas, carnavais, cerveja e forró, acompanhadas pelo próprio pai, um homem à frente do seu tempo. Formado em Direito pela primeira escola de Recife, em Pernambuco, orgulhou-se da sua negritude e presidiu a primeira seção da Ordem dos Advogados do Brasil no Acre, assim como duas escolas de ensino fundamental e médio da capital. Seu repertório e inteligência lhe deram base para incentivar todas as filhas ao estudo, à independência profissional e financeira e a casamentos em que o machismo não tivesse voz. Ainda dirigiam e usavam calça comprida, uma peça ousada para as mulheres da época.

Nazareth foi estudar na capital paraense, mas acabou por interromper o sonho de fazer Farmácia com a morte do pai e a falta de recursos para a faculdade. Cursou magistério e se esmerou na sala de aula e na coordenação de escola ao longo de muitos anos, até se aposentar. Caprichosa em tudo que fazia, mantinha cadernos organizados e bem cuidados. Primor também não lhe faltava no crochê, técnica a que se dedicou já com a idade mais avançada, confeccionando peças grandes como cortinas e colchas, suas favoritas. Sentada na cadeira de balanço, “tão envolvida ficava no crochê que era capaz de passar adiante notícias que julgava ter ouvido na TV — porque ela ouvia TV, não via. ‘Matou’ artistas que recebiam homenagens, confundiu procissão com manifestação, uma confusão”, conta com bom humor a filha Clarisse, a terceira ao lado de Othília, Marisa e Flávia.

O matrimônio foi na vida de Nazareth uma grande felicidade. “Casou com quem sempre gostou dela e de quem sempre gostou. Quando papai morreu foi uma dor”, comenta. Os dois se conheceram na retreta, uma apresentação de música na praça, e viveram enamorados por trinta e quatro anos. “Casaram-se por procuração. Temos suspeita de que mamãe estivesse grávida”, brinca Clarisse. O fato é que Otacílio, um homem alto e bonitão na opinião da filha, paparicou Nazareth o quanto pôde. O marido também não hesitava em fazer as compras no supermercado, cortar carne, limpar peixe, limpar a casa e ajudar no cotidiano doméstico.

Avó de sete netos, Nazareth mantinha a tranquilidade, o humor, a vaidade e a jovialidade a ponto de trocar qualquer coisa por um festejo. “Sempre gostou de um pozinho no rosto e um batom, além do cabelo arrumado”, completa a filha. Frequentava a igreja católica para suas orações, mas no Carnaval divertia-se com a banda na praça, dançando e cantando como nos tempos de juventude, quando o bloco das doze moças da família Baptista desfilava com música e fantasia próprias pelos bailes de Rio Branco.

Clarisse guarda e narra as recordações de Nazareth com muita alegria. “Nunca fiquei de luto da minha mãe, fui tomada pela indignação da pandemia. Toda a raiva pus para fora na noite da eleição”.

Nazareth viveu como em uma grande festa!

Maria nasceu em Rio Branco (AC) e faleceu em Rio Branco (AC), aos 87 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Clarisse Baptista de Carvalho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 7 de agosto de 2023.