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Maria Glicéria Gomes

1935 - 2020

Na cozinha, atiçando o fogo a lenha, Maria preparava uma comida deliciosa.

Maria Glicéria era de um tempo em que as mulheres buscavam água na fonte para cozinhar, lavar as vasilhas e tomar banho. Só algum tempo depois passou a ter água encanada em sua casa. Os vocativos Dona Maria, Vó Maria e Vó Bisa são formas de tratamento que revelam diversos papéis desempenhados por ela.

Dona Maria era muito conhecida no Morro Santana, bairro da cidade colonial mineira de Ouro Preto. A tal ponto que ela acabou virando personagem da série de documentários realizada pela Universidade Federal de Ouro Preto-UFOP, intitulado “Eu Também sou Patrimônio”.

Uma das razões do lugar de destaque que Dona Maria ganhou junto à comunidade do bairro, foi o saber de benzedeira, fruto de uma fé enorme, que fazia da “benzeção” dela uma oração muito forte. Ela benzia crianças “de sentimento”. A bisneta Vitória explica que quando uma criança ficava chorando muito, caindo e não estava comendo direito, porque estava triste em decorrência de algum acontecimento em sua vida pessoal, Dona Maria fazia a “benzeção de sentimento” para a criança melhorar. No ritual usava uma medalha benta e rezava para o anjo da guarda da criança por três dias seguidos, fazendo o sinal da cruz no peito dela. O ato de benzer fazia parte do cotidiano, mas ela gostava muito de fazer essas orações na Sexta-Feira da Paixão, quando também benzia crianças com problemas respiratórios tais como bronquite.

Ainda na dimensão da fé, aos domingos ia à missa das dez na Capela de Santana. Ela gostava muito porque o coral do filho Luiz Barbosa, que herdou o nome do pai, cantava nas celebrações. A maioria das músicas do repertório era em latim. Toda primeira sexta-feira do mês ela ia à missa na Igreja das Mercês, no centro histórico de Ouro Preto.

Nos meses de maio era tempo da Festa de Santa Cruz. A exemplo de muitos moradores da cidade, Dona Maria participava de uma tradição que remonta ao século XVIII. Ela enfeitava o crucifixo com papéis coloridos e flores, e colocava na porta da casa em devoção à Santa Cruz. Durante o restante do ano, a cruz costumava ficar adornando a frente da casa.

Mas a grande felicidade dela era ver a família reunida nos finais de semana. O casamento com Luiz Barbosa, que gerou 15 filhos biológicos e mais um adotivo, com o tempo fez dela tia, sogra, avó e bisavó. E assim passou a ser chamada de Vó Maria e Vó Bisa. “Na verdade, naquela coisa de criança, eu jurava que Vó Bisa era o nome dela”, conta sorrindo a bisneta Vitória.

Nesses domingos, com lenço na cabeça, era dia de fazer almoço no fogão a lenha e usar as panelas bem grandes que tinha especialmente para essas ocasiões. Como a família é muito grande, era uma folia só. Quando a comida ficava pronta, a refeição era servida numa mesa montada no quintal da pequena casa, pois dentro não cabia todo mundo. Antes da refeição, o filho Pedro sempre coordenava um momento de oração e agradecimento pelo alimento.

O cardápio era variado. De manhã, na chegada dos familiares, a água fervida no fogão a lenha era usada para passar o café no coador de pano, que era servido com broa de fubá. Na hora do almoço, o delicioso macarrão, verduras colhidas na horta. O frango com ora-pro-nóbis também era muito apreciado. Para a sobremesa, doce de leite ou de goiaba com queijo de minas. Nos encontros de Natal, o famoso e esperado pão dourado.

Outra habilidade da Vó Maria era a costura. Na máquina dela eram feitos muitos reparos em roupas dos netos e panos de prato. Mas a delicadeza dessa história está nos incontáveis bonecos e bonecas de pano que ela sempre fazia para os parentes. Na casa dela os personagens inventados livremente enfeitavam prateleiras da sala. A bisneta Vitória guarda com carinho uma boneca preta e outra branca que ganhou de presente da bisa.

O ato de costurar bonecas foi aprendido com a mãe Dona Geralda. Na infância, em Conselheiro Pena, a família vivia do trabalho na roça e não tinha dinheiro para comprar brinquedos para os filhos. Para não deixar faltar alguma diversão, a mãe fazia as bonecas que Dona Maria Glicéria também aprendeu a fazer e aprimorou.

A relação da Vitória com sua vó bisa teve a marca de muito afeto, visitas regulares em finais de semana e boas conversas. As duas moravam relativamente distantes e a chegada à casa de Maria era marcada por “uma subida infinita”, conta a bisneta sorrindo. “Ela foi uma bisavó, muito... muito carinhosa, um anjo. Sempre que possível passava o dia com ela para curtir os mínimos momentos, conversar e matar a saudade. Era bom ajudá-la, juntamente com minha avó, a fazer o almoço no fogão a lenha e tomar um café, que ela gostava tanto... Eu amava o macarrão, a couve e o fubá suado.” Vitória recorda, ainda, como era bom estar com ela, tirar uma soneca depois do almoço, e ficar conversando e observando a bisavó costurar. Durante a pandemia os encontros e cafés aconteciam por chamada de vídeo.

Nas conversas com a bisneta, Maria Glicéria recordava os tempos de juventude e falava muito sobre o marido Seu Luiz Barbosa. As duas falavam também sobre o tempo em que os filhos ainda eram criança e sobre como era a vida na roça.

Uma das memórias compartilhadas por Dona Maria foi o dia em que pela primeira vez os filhos comeram algodão-doce. O vendedor ofereceu a guloseima aos filhos mais novos. Contudo, o dinheiro que tinha era suficiente para comprar apenas um algodão-doce. Com jeito, a filha mais velha de Maria Glicéria, a Lilica, convenceu o senhor a vender mais barato e todas as crianças puderam ter o prazer de saborear o doce. Dona Maria contava essa história com orgulho e felicidade porque esse teria sido o dia mais feliz da vida deles.

Para Vitória, sua vó bisa é inexplicável, pois tinha a doçura e a força na mesma medida, o que fez dela uma pessoa de coração muito bom. Na memória da bisneta está sempre presente o inesquecível e inconfundível sorriso que refletia toda a paz e serenidade de Dona Maria. Um sorrir discreto e calmo que, de tão comum e constante, compunha a fisionomia acolhedora de sua face marcada pelo tempo, juntamente com um olhar carinhoso e azul.

Maria Glicéria deixa memórias ternas, de aquecer o coração... Na cozinha, com um lenço na cabeça atiçando o fogo a lenha, cuidando das galinhas e da horta, preparando aquela comida deliciosa com gosto de casa de vó e amor. Segue viva também no ato de benzer que ensinou às irmãs Maria da Conceição e Ana Lucia, conhecidas como Lilica e Lucinha. Nos pães dourados preparados por dona Lucinha e nos bonecos de pano que povoam as casas da família.

Maria nasceu em Conselheiro Pena (MG) e faleceu em Ouro Preto (MG), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela bisneta de Maria, Vitória da Conceição Luiza Ferreira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 13 de agosto de 2021.