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Maria José Pereira de Arruda

1954 - 2020

Tia Cremosa, das pernas bonitas, dos canudinhos de papel e que quando era contrariada, dizia: “Que gracinha!”

Para os oito filhos, Dona Jocelina fez assim: batizava a criança com um nome e no dia a dia a chamava por outro. Assim, Luiz ficou conhecido por Lucas; Benedita, por Didi; Cícero, por Nêgo Ciço; Dourival, por Val; Maria José, por Lia; Tereza, por Teca; José, por Zeca; Genivaldo, por Neno. Ninguém sabia o porquê. Mas não precisava: "mãe disse, tá dito!"

A origem é importante para compreender Lia, a quinta a nascer. Afinal, também ela, assim como a mãe, tinha algumas manias. A mais presente era fazer canudo com papel. Lia enrolava papel como ninguém! Qualquer papel que encontrava. Da pontinha, ia enrolando, amiúde, até chegar na ponta oposta. Devagarinho, porque pressa não tinha. E pronto: o canudinho ficava ali, cumprindo sua missão enquanto papel. Uma vez canudo, era deixado de lado. Era uma mania tão frequente que, certa vez, enrolou uma nota de dez reais. Ao passar por uma lixeira, jogou o canudinho fora esquecendo que não era… só papel!

Lia tinha ainda outra mania: todo sábado, comprava chocolate. Sonho de Valsa, Serenata de Amor e Ouro Branco eram seus preferidos. Chamava a sobrinha Jane, que pra ela era a Neguinha, e se escondiam no quarto. Pra não ter que dividir com ninguém. “Ela também comprava Bis. Mas só me dava dois. Comia o resto da caixa sozinha!”, recorda Jane, sorrindo. Tia Lia também dava sorvete escondido para Jane. E banana split. E batata frita com ketchup. E pastel. E bolos com cobertura. E sanduíche com maionese!

Nos últimos meses, os sobrinhos deram de chamar tia Lia de "Cremosa". Gostavam de provocá-la, de vê-la toda curiosa: “Por que Cremosa?”. Mas não tinha resposta. Não existia um porquê! Coisa de família, assim como, na infância, Maria José virou Lia. E então de Lia virou Cremosa. O que importava era o afeto. Sempre muito afeto.

Lia fica na lembrança como aquela mulher de múltiplas facetas, que: cozinhava pirão de ovo com muita pimenta-do-reino; andava sempre bem arrumada, maquiada e de unhas pintadas; gostava de shorts curtos, para mostrar as pernas grossas e bonitas; dizia “Que gracinha!”, toda vez que desaprovava algo; comprava as chuquinhas pra pentear o cabelo da sobrinha; falava como menina, mesmo sendo senhora; amava intensamente; fazia mistura caseira, com óleo de urucum, cenoura e beterraba, pra tomar sol na praia de Pajuçara.

A maior virtude de Lia era a compaixão. O sofrimento dos outros sempre a comovia. Quando trabalhava como técnica em enfermagem, ver a dor de um paciente lhe causou uma impressão tão forte, que precisou deixar o expediente, para nunca mais voltar. Tinha um coração mole e grande. Nele cabiam todos os que ela amava: a filha Laís (Isinha), a neta Laura (Denguinho, Preta, Minha Laurinha) e os sobrinhos: Jane, Cléa, Cley, Sila, Nessinha, Kiara, Sophia, Juninho Nêgo-Nêgo, Larissa, Léo, Lilian, Arthur, Thiago e Bia.

Sempre cercada de gente e de nomes para apelidar. Assim como ela, Maria José. Lia. Mãe Lia. Vó Lia. Tia Lia. Cremosa. Foram muitas as formas para evocar um sentimento: o amor.

Maria nasceu em Maceió (AL) e faleceu em Maceió (AL), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha de Maria, Jane. Este texto foi apurado e escrito por Carolina Margiotte Grohmann, revisado por voluntário e moderado por Rayane Urani em 23 de junho de 2021.