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Maria Pereira Santos Lemes

1943 - 2020

Viveram com amor. E no amor, juntos, encontraram repouso.

Antônio e Maria ─ uma história de vida e morte.

Esta é a história contada com poesia por Jaime, filho de Antônio e Maria Lemes:

Amor. Simplesmente amor. O mais pleno amor. Na alegria e na dor, na vida e na morte. Sempre juntos na Terra, em outra vida, se houvesse – e nisto acreditavam –, diferente não poderia ser: entrariam juntos no Céu.

"Até que a morte os separe?" Nada disso!

Naquele dia, no altar, entreolharam-se ignorando a sentença proferida pelo padre e viveram intensamente como dois amantes, aproveitando cada fase da vida.

Vieram os filhos e a eles devotaram o melhor de si, doaram-se por inteiro, para que fossem gente e livres.

Quando a idade chegou, e com ela as limitações, começaram a tramar ─ tal qual uma fuga ─ como seria a partida deste mundo. Pensaram meticulosamente em cada detalhe. Ele até deixou escapar alguma informação do plano. Mas, no momento, ninguém deu muita atenção. Ninguém quer pensar no fim. Ela não. Ela fez silêncio. Para não correr o risco de comprometer o plano, literalmente, deixou de se comunicar por palavras.

Tudo pronto! Agora, era só convencer Deus. Até nisto tiveram sorte.

De repente, o mundo entrou em colapso com a famigerada pandemia, que fez de 2020 o ano que não deveria ter existido.

Decidiram então colocar o plano em ação. Num lampejo de distração do anjo de guarda, embrenharam-se no meio de uma multidão de milhões a caminho da Terra Prometida. No meio da confusão, Maria soltou a mão de Antônio e se perdeu. Acabou chegando primeiro no Céu.

Na porta, fez pirraça. Não entraria sem seu amado. O arcanjo de plantão até tentou explicar a ela que no Céu não tem essa coisa de marido e mulher, de namorados e amantes, e fez demorada explanação teológica sobre a realidade celestial.

Ela deu de ombros, ignorando toda aquela exegese escatológica. E foi enfática: "Sem meu Antônio, não entro! E se ele não vem, tratem de me levar de volta. Ou os dois, ou nenhum!"

O arcanjo, impressionado com a (im)postura altiva de Maria e temendo que ela liderasse um movimento de protesto na porta do Céu, ordenou imediatamente aos outros anjos que procurassem na Terra por Antônio e que não voltassem sem antes encontrá-lo.

Maria deu 48 horas para que trouxessem seu amado ou a rebelião estaria formada, garantindo inclusive já ter o apoio de outra Maria, aquela maior, o que não ficaria nada bem para a imagem do Céu.

Dito e feito! 48 horas depois, Antônio chegava, trazido pelos anjos. Maria o tomou pela mão e, juntos, como dois amantes, adentraram. E Deus riu de tal proeza.

Maria nasceu em Machacalis (MG) e faleceu em Machacalis (MG), aos 76 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Maria, Jaime Pereira Lemes. Este tributo foi apurado por Thaíssa Parente, editado por Míriam Ramalho, revisado por Allanis Carolina e Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 24 de dezembro de 2020.