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Maria Tereza Johann

1946 - 2021

Em volta do fogão a lenha, ela se aquecia nos dias frios do Sul e procurava saber se todos estavam bem.

Dona Maria era professora aposentada. Uma profissão que marcou para sempre a identidade dela em linha Santo Antônio, comunidade de Taquaruçu do Sul, no interior do Rio Grande do Sul. Era muito comum que, nas andanças pelo lugar e nas missas dos finais de semana e celebrações na Igreja de Santo Antônio, ela fosse sempre chamada de “professora”.

Por muitos anos de sua vida, Dona Maria ou estava em casa ou na escola ou na igreja — as três construções bem perto uma da outra. Atualmente, o prédio da escola onde lecionou não existe mais.

A carreira como professora começou na comunidade da linha Picinini, também nos interiores gaúchos. Um pouco mais tarde, ela tomou posse no cargo de professora na escola da linha Santo Antônio. No livro de registro da escola, arquivado na Secretaria Municipal de Taquaruçu do Sul o acontecimento somente foi registrado em 1978: numa página pautada e amarelada pelo tempo segue escrito em bela letra cursiva:

“Aos 2 (dias) de Março do ano de mil novecentos e sessenta e seis (1966). Na escola de Santo Antônio assumiu a professora do 1º Grau a professora Maria Tereza Johann, e para que possa fazer jus aos direitos de professora, foi lavrado este termo de posse que vai assinado pela professora empossada, pelo diretor desta escola e por mim, que escrevi, José Baldin Sobrinho. Data 03 de maio de 1978”.

Importante ressaltar que a expressão "primeiro grau" designava os quatro primeiros anos das séries iniciais. Na pequenina escola, que atualmente não existe mais, havia somente duas salas. E Dona Maria Tereza foi responsável por turmas que acolhiam na mesma sala crianças do primeiro ao terceiro ano, cuidando da alfabetização e do ensino de matemática e ciências.

Diariamente, antes do início das atividades pedagógicas, todos rezavam de mãos dadas. Dona Maria era uma mestra dedicada e rigorosa, que cobrava muito a disciplina e o aprendizado de seus alunos e alunas. Uma de suas ex-alunas, Dona Dorlene Maria Volpato Ritter, conta que a turma dela era composta por 35 crianças de diversas idades. “A gente brigava muito entre nós e Dona Maria precisava intervir com castigos. Não posso negar que, de vez em quando, ela apelava para uma varinha que ficava sempre perto da mesa dela para repreender os mais bagunceiros e brigões”, relembra ela.

Por outro lado, afeto e atitudes de carinho marcavam o cotidiano da classe. Dona Maria apreciava o zelo dos alunos que, para organizar seus cadernos e livros, usavam sacos de açúcar como pastas escolares. Ela fazia questão de elogiar os avanços de cada um e escrever bilhetinhos de incentivo na correção das atividades. Prova do carinho mútuo é que “toda vida, quando gente se encontrava na igreja, nos abraçávamos. Todo mundo que foi aluno dela fazia questão chamá-la de Professora”, conta Dona Dorlene.

No Dia do Professor, as crianças colhiam flores em suas casas para presentear Dona Maria. Na chegada à escola cada um ia presenteando a professora com suas flores, e uma jarra improvisada enfeitava a sua mesa com um buquê colorido.

Muito religiosa e devota de Santo Antônio, Dona Maria Tereza foi também professora de catequese na Igreja que ajudou a construir dedicada ao santo casamenteiro. Numa salinha da paróquia, a preparação para a primeira comunhão acontecia no intervalo entre os 9 e 13 anos. Pouco a pouco, a catequista ia transmitindo aos jovens as primeiras noções de fé e ensinando a meninada a rezar.

Na memória de Dona Dorlene está viva a primeira oração que aprendeu com Dona Maria Tereza. A reza, ensinada até hoje aos filhos e netos, é uma prece para a hora de dormir e diz assim: “Santo Antônio pequenino, vou agora me deitar na minha cama abençoada, para poder descansar”.

No universo particular, Dona Maria Tereza foi mãe, avó e bisavó amorosa e carinhosa. De seu relacionamento com Seu Raul nasceram José, Valmir, Márcia (os três já falecidos), Marisa, Ivonei, Jovane e Cândida. Depois vieram os netos Jhonatan, Giovane, Jean, Leonardo, Gabriela, Rafaela, Otto e Heloisa. E um bisneto batizado de Henrique.

O relacionamento com Seu Raul Johann era muito harmonioso. Eles se conheceram em uma reunião dançante na linha Santana, interior de Seberi, atualmente Taquaruçu do Sul. A comunidade ficava perto da linha Santo Antônio e Dona Maria, que na época dava aulas na linha Picinini, começou a frequentar os cultos na Igreja de Santo Antônio. Assim, foram se conhecendo melhor e o amor ganhou o coração dos dois. O casamento aconteceu em 29/1/1966. Na mesma data, aconteceram as cerimônias no civil e no religioso, esta celebrada na igreja de Seberi.

Seu Raul foi muito atencioso com a esposa durante todo o tempo de convivência. Quando foram envelhecendo, Dona Maria teve problemas de visão por conta da diabete. Com muito carinho e paciência, era ele quem preparava a insulina e cuidava da hora de tomar os remédios. Também em decorrência da pouca visão, Dona Maria não conseguia mais pintar as unhas. E mais uma vez lá estava seu Raul, que fazia o serviço de manicure. De forma bem-humorada, a neta Heloisa conta que o resultado “não era lá essas coisas, mas ele fazia a unha da vó com muito carinho”.

Entre todos da família Dona Maria é sempre lembrada pelo seu jeito amoroso. Com muito afeto, ela nunca se recusava a preparar seus deliciosos bolinhos fritos para realizar a vontade dos filhos. Mesmo depois de casados, apreciavam os bolinhos da mãe.

Com os netos não era diferente. Heloisa conta que nas tardes chuvosas e frias do Sul, a reunião da família acontecia em volta do fogão a lenha. Ali, enquanto se aqueciam e tomavam mate, a conversa fluía. “Toda vez que íamos visitá-la, Vó Maria oferecia balas, doces, bolos, bolachas e outras comidas e o que mais fosse necessário para que nos sentíssemos confortáveis. Não deixava que ninguém fosse embora sem comer”, acrescenta a neta. Comumente, Dona Maria demonstrava preocupação com os familiares e recomendava que todos se cuidassem. Sempre muito atenciosa, desejava o bem de todos, perguntava a cada um se estava tudo bem. Na hora da chegada e da partida, abençoava a todos.

Se Heloisa pudesse dizer apenas uma palavra para definir sua avó Maria, escolheria dizer amor. “Porque quando penso nela, a primeira coisa que me vem à mente é o amor que tinha por nós. Em meu coração guardo muito amor por ela. Saber que pudemos nos encontrar nesta vida e o fato de ela ter sido minha avó me conforta”.

Dona Maria segue viva quando todas as noites, antes de dormir, alguém reza a oração de Santo Antônio. No calor das rodas ao redor do fogão a lenha para aquecer os dias frios do Sul. Nos ensinamentos levados no prosseguir da vida de seus alunos da escola e da catequese.

Maria nasceu em Siberi (RS) e faleceu em Taquaruçu do Sul (RS), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Maria, Heloisa Rossato Johann. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 8 de junho de 2022.