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Meraldo Pereira de Souza

1951 - 2020

Orgulhava-se ter sido o primeiro motorista da Universidade do Estado de Mato Grosso, contratado em 1996.

Ele tinha o apelido de Miro. O terceiro entre 12 irmãos e nascido em uma família muito pobre, precisou trabalhar desde cedo. Morava na roça, trabalhava com plantio de milho; mais tarde, foi também engraxate. Para estudar, foi morar com a madrinha e padrinho na cidade de Coxim, no Mato Grosso do Sul, mas aos 13 anos teve que abandonar a escola. Em 1967 mudou-se com seus pais para Cáceres, no Mato Grosso, e começou a trabalhar como ajudante de mecânico na Mecânica Matshushita. Foi nessa época que ganhou o apelido.

Em 1996 foi contratado como motorista da Universidade do Estado de Mato Grosso, o primeiro do lugar. “Um amigo dele disse que a Universidade estava precisando de motorista e assim ele foi. Conduziu o reitor e grande amigo dele por todo o estado do Mato Grosso, dirigindo um Uno Mille vermelho. Realizavam o sonho de construir uma universidade pública no interior do Estado, levando o ensino superior a lugares não imaginados”, lembra a filha Rosângela.

Sua luta pelo reconhecimento da Universidade e sua dedicação motivaram a seguinte nota de pesar: “É com extremo pesar que a UNEMAT comunica o falecimento do senhor Meraldo Pereira de Souza, conhecido como Miro Souza, ocorrido nessa segunda-feira (07.09), mais uma vítima da Covid-19. À família enlutada, a Unemat estende sinceros pêsames e homenagens ao profissional que participou de perto do nascimento desta Universidade. O Sr. Miro sempre será lembrado com respeito e consideração por gestores, professores e funcionários como o primeiro motorista do primeiro carro oficial da Unemat".

Das viagens na UNEMAT costumava lembrar de uma para Chile que fez com alguns professores e que, segundo ele, foi muito divertida. Ele amava estar na estrada, apesar de dizer que era perigoso. Quando deixou a Universidade, trabalhou por dez anos na Unesco a convite do amigo e professor Carlos Reys, e só em 2005 aposentou-se.

Da infância na roça lembrava das brincadeiras com os irmãos Marivaldo e Veraldo, e das artes que fazia, a ponto de receber algum castigo do pai. Lembrava da vez em que foi a um almoço de família em Coxim e só comeu o arroz! É que lá na roça eles tinham sempre milho, carne, frango, ovos e ele nunca tinha comido arroz; quando ele viu aquela panela branquinha não se interessou por mais nada.

Casou-se em 1975 com Leopoldina e permaneceu casado até 2011, quando ficou viúvo. A história de amor começou com uma desilusão amorosa da moça que estava terminando um noivado de cinco anos com um outro rapaz. Determinada a superar a decepção, foi ao cinema com uma amiga e o namorado dela, que levou junto o irmão, Miro. Foi paixão à primeira vista! Sete meses depois do início do namoro eles se casaram, em junho de 1975, e a filha Rosangela nasceu em maio de 1976.

Miro e Leopoldina enfrentaram muitos obstáculos para ficarem juntos e ele ser aceito pela família dela. Leopoldina era de uma família rica, que dizia que Miro não era para ela, porque era pobre e não tinha estudo. Leopoldina não deu atenção ao falatório: decidida, saiu da casa dos tios e foi morar com amigos, para logo depois eles se casarem.

O casamento foi em Porto Esperidião, na fazenda da tia. Apesar de não ter estudado e de ter sido vítima do preconceito, Miro sempre valorizou o estudo. “Meu pai sempre disse que tínhamos que estudar e assim fizemos, pois a estrada da vida é muito perigosa. Mas a profissão de meus irmãos também é — eles são Policiais Militares. Eu me tornei professora. Graças a Deus, todos nós somos efetivos, pois meus pais se sacrificaram para que pudéssemos estudar”, conta Rosangela.

Miro foi pai de três filhos: Rosangela, Alex Sander e Alessander. E o avô dedicado e amoroso de nove netos: Luna, Anna Clara, Andreza, Laura, Helena, Kaleo, Emanuelle, Arthur e Benício. Miro era feliz com tantos netos e uma grande família.

A família morava em Cáceres e ele em Cuiabá trabalhando como motorista da UNEMAT até o ano de 2005. Um belo dia, sentada na calçada com a filha, Leopoldina viu o carro do marido aproximar-se. Ele desceu cantando: “Eu voltei, agora para ficar, por que aqui, aqui é meu lugar”. Emocionadas e felizes, mãe e filha tinham agora o apoio de Miro, tornando a vida mais fácil e leve. Juntos, enfrentaram a difícil batalha de Leopoldina, que, nessa época, já estava doente e fazendo hemodiálise. Na vida de aposentado, mantinha uma rotina de idas à oficina do amigo Carlinhos e viagens à Cuiabá, levando clientes.

Uma das grandes alegrias de Miro era ser avô. Da primeira vez ficou inseguro, mas logo a insegurança deu espaço para a alegria. Ficou feliz por ser uma menina e porque se chamaria Luna Beatriz, pois Luna é o nome da filha do amigo Carlos Reys. O primeiro neto homem foi o Kaleo e ele foi um avô super babão. Para exprimir o que foi esse avô nada melhor do que contar de sua amizade com o neto Artur: identificavam-se como os melhores amigos para sempre. Para agradá-lo, antes de ir embora, dava uma voltinha no quarteirão de carro com ele. Miro tinha o hábito de levar leite e biscoito para o Artur, que chamava de Tutu. “Eu sinto saudade do vô porque ele trazia leite e biscoito”, diz o pequeno. Mesmo a mãe ou o tio comprando os mesmos biscoitos ele diz que não é a mesma coisa porque não foi o vô que deu.

A conexão entre Miro o netinho Artur era tamanha, que no cemitério, após o sepultamento do avô, o menino teve uma visão, descrita com emoção pela mãe. “Artur estava por ali correndo e aí parou; olhou para cima, depois veio para perto de mim e disse assim: ‘Olha mamãe, cê tá vendo?’ E eu falei: ‘Tá vendo o que?’ Ele continuou: 'Mãe, olha lá, cê não tá vendo?’ E aí, ele levantou a mão, deu tchau, e falou assim: ‘Olha lá o vovô indo, a alma do vovô já está indo, ó. Mãe, você não tá vendo?’ Eu disse que não e ele continuou: 'Tá bom, tchau vovô’... E sem seguida: ‘Ah, agora que o vovô já foi, agora eu vou brincar’. E saiu correndo. E sempre que eu pergunto ele conta a mesma história, 'que um homem de branco veio, segurou na mão do vovô que tava perto ali da gente e levou ele pro céu'”.

Humildade, paciência e amor à família eram características marcantes de Miro. Além disso, sabia se comunicar muito bem. Era só puxar uma conversa e já virava amigo. Ele sempre foi um homem que despertava a amizade de todas as pessoas, tratava a todos por igual. Não existia favorecimento, considerava que todas as pessoas eram importantes e mereciam respeito. “Nunca vi meu pai depreciar uma pessoa. Ele sempre esteve atento para ajudá-las em tudo que precisassem”, lembra Rosângela. Ajudou muita gente, como um rapaz, filho de uma comadre dele, que não podia andar e por vezes contava com os préstimos dele para algum auxílio, como ir ao banco ou ao médico. Ajudou a muitos. Ele costumava dizer que quando você faz o bem, tudo de bom vem. Para ele toda hora era hora de ser feliz apesar dos problemas da vida. Costumava falar que tudo ia se resolver, era só ter fé.

Ele gostava de dirigir e não só a trabalho — amava os passeios de carro. Uma vez, a família inteira foi de carro para a Bolívia. As viagens com a família eram sempre momentos especiais porque, por conta das sessões de hemodiálise da esposa, três vezes por semana, não era possível realizá-las com tanta frequência, nem com longa duração. Após a morte de Leopoldina, passou a viajar com a filha para a casa da sogra dela em Curvelândia, no sítio onde ele amava descansar. Em outubro de 2020 fez sua última viagem para a praia. Ele amava o mar. Seu sonho era levar os netos em uma viagem dessas. “Antes de ser internado ele fez meu irmão prometer que iria levá-los. E assim cumpriu. Fizemos uma homenagem emocionante para ele”, lembra a filha.

Miro era apreciador de um bom churrasco e de uma cervejinha gelada. Na casa de um dos filhos, em sua homenagem, batizou-se o espaço do churrasco de Espaço Gourmiro; e como recordação de sua presença está lá o chapéu que ele adorava, comprado em uma viagem a Maceió. Além do churrasquinho de fim de semana — que ele gostava de fazer para chamar os amigos e a família —, amava fazer macarrão com frango para os netos Luna Beatriz, Andreza, Kaléo e Arthur, quando iam passar o sábado com ele. Todos os dias ia à casa de Rosângela e aos domingos almoçava com ela e os netos. Ela lembra que durante um período em que ficou sem tomar cerveja ele levava para ela bebidas "ice". Era um pai muito especial e uma pessoa verdadeira, que cultivava amigos e era querido por todos. Costumava dizer que o melhor presente que a vida nos dá é a família, e que para se ter bons amigos é preciso ser um bom amigo também. Não só na hora da festa, mas também nos perrengues.

Fazer amigos, promover encontros, abrir diálogos — Miro era muito bom nisso tudo. “Lembro que quando íamos buscar a diretora da Unesco, na época em que ele trabalhava lá, o pai logo lhe perguntava: 'Como vai?', e aí a conversa se desenrolava. Era amigo de todos na Instituição, desde estagiários até diretores. As pessoas não tinham resistência em partilhar algo pessoal com ele, que fazia questão de conversar com todos da mesma forma, o que o tornava muito querido” recorda Rosângela. “Até as pessoas mais fechadas, o pai tinha certa habilidade em fazer com que essa 'parede' fosse rompida”, lembra o caçula Alessander.

No aniversário de 15 anos da filha resolveu fazer a festa em casa mesmo, convidando somente alguns amigos e a família. Só que, sem ninguém esperar, o bairro todo estava lá! "Como era um churrasco e só tinha carne para umas 20 pessoas, ele teve que providenciar o suficiente para 150 pessoas, ligando para o dono do açougue, que prontamente atendeu seu pedido... com a condição de que ele e sua família também fossem convidados para festa. Com isso, todo mundo comeu e bebeu, graças à amizade dele com o açougueiro. Era tão popular que podia até se candidatar a vereador que se elegia", conta a filha.

Gostava de fazer caminhadas nos finais de tarde, quando não estava viajando; às vezes era só uma caminhadinha até a pracinha da academia. O relógio do passeio era todo chique. Divertia-se assistindo a filmes de ação e documentários sobre animais. Os últimos filmes que assistiu foram Os Mercenários e Rambo. Curiosamente, sentava-se na cadeira de fio, com seu copinho de cerveja junto, acompanhado do genro, e conseguia dormir em pleno filme de ação.

Miro foi um pai sempre muito presente e um apoio constante para a filha Rosângela, que mantém em seu coração muita gratidão por todo amor que recebeu. “Ele sempre dizia que me amava”, diz ela. No celular estão guardadas as mensagens de áudio do pai. “Quando sinto falta da voz dele, eu ouço, para matar a saudade”, confidencia. "Ele foi um bom pai, um bom herói, um amigo. Todo mundo vai sentir falta dele, porque ele só fazia o bem; vai fazer muita falta", conclui.

Meraldo nasceu em Três Lagoas (MS) e faleceu em Cáceres (MT), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Meraldo, Rosangela Ortiz de Souza. Este texto foi apurado e escrito por , revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 16 de dezembro de 2021.