1953 - 2021
Irradiava amor nas suas lutas pela igualdade de direitos.
Míriam ou Mia, como era chamada, foi uma mãe solo que enfrentou muitos desafios para criar praticamente sozinha a filha Júlia, na década de 80, mas não se deixou aquebrantar por eles e a ensinou a amar, respeitar e conviver com o pai de uma forma amigável.
No fim do ano de 1982 ela montou uma casa e batalhou muito por esse amor de mãe e filha em uma história algumas vezes atravessada por questões inter-raciais, já que ela era branca e Sylvio, o pai de sua filha, negro. Tal fato não era aceito por sua família e, sem uma rede de apoio, muitas vezes ela teve que deixá-la aos cuidados de babás ou creches e tudo isso foi a base de suas lutas por igualdade de direitos.
Mia amava muito as pessoas, indistintamente; não suportava preconceitos ou racismo e lutava pelas mulheres, por negras e negros, pela Umbanda (sua religião), pela não prática da homofobia, transfobia, pelas pessoas em situação de rua, tudo à maneira de uma senhora de 67 anos com suas regras, sua geração e sua visão de mundo.
As dificuldades por elas vividas fortaleceram o seu vínculo e Júlia assim descreve: “Minha mãe era minha melhor amiga, sempre esteve ao meu lado pra tudo, no que concordava ou não; não havia nada que não pudesse contar com ela. Às vezes me pego conversando com ela, buscando respostas e reflexões para as inúmeras situações da vida, ouço ela dizendo “Julia, não é assim que as coisas funcionam, tenha calma, paciência, para tudo há um jeito nessa vida, menos pra morte” eram as palavras dela!”
Para Júlia, Mia representava o amor da cabeça aos pés, sempre preocupada com todos, conhecidos, desconhecidos. Não havia uma pessoa que recorresse a ela ou que ela soubesse que estava em uma situação difícil, que não levasse alento, fosse com uma palavra, uma reflexão, ajuda financeira, mesmo que estivesse em tempos difíceis, ou apenas ouvindo suas amigas e amigos por horas.
Antes de morar em Fortaleza ela vivia em São Paulo e falava das lembranças relacionadas à cultura, gastronomia, arte, pessoas, dos tempos idos, das memórias do que lá viveu. Sempre com muita alegria de viver, amava dançar, e quando chegou ao Ceará ia muito ao Mercado dos Pinhões nos dias em que havia Chorinho e ali não só espalhava, mas também recebia muita energia dos amigos tão queridos que ela tanto amava. Ela gostava de registrar esses momentos com fotos e deixou inúmeras delas dançando, cantando e sorrindo.
Ela ia também aos concertos de ópera com transmissão ao vivo, ia dançar no Banco do Nordeste, no Círculo Militar ou na confraria de amigos da dança. Apresentou à filha as artes em geral e ela aprendeu a apreciar a música, os filmes, o teatro, os livros e a cultura em geral. Quando iam à Fortaleza para consultas médicas, aproveitavam sempre para ir ao cinema ou assistir a alguma apresentação de chorinho, ir ao passeio público, comer alguma coisa e tomar uma cervejinha.
A filha gostava de mimá-la, fazendo os pratos que ela mais gostava em almoços e jantares frequentes. Quando Julia foi morar com o marido Cláudio, que era cozinheiro e dono de um restaurante, em uma praia distante dela apenas cinco quilômetros, as duas estavam sempre juntas e Mia gostava de ir lá para ver o mar, comer um peixe e ouvir boas músicas.
Ela trabalhava como aeroviária e nas horas vagas gostava muito de ficar na internet conversando com os amigos, acompanhando lives relacionadas aos fundos dos aposentados, assistindo vídeos de política, animais e natureza. Na política sempre teve um posicionamento de esquerda, petista rocha e apaixonada por Lula.
Alimentava o sonho de ganhar na Mega Sena para ajudar muita gente. Ela amava o mar, mas desde que chegou ao Ceará teve um problema no fêmur que foi dificultando sua mobilidade e isso a obrigou a fazer uma cirurgia. Foram tempos de dificuldades, mas ela sempre guerreira, enfrentou tudo com a esperança de concluir seu tratamento para voltar a dançar e poder novamente se banhar no mar.
Mia era muito justa e metódica, tanto que Júlia brincava com ela a chamando de “chatiniana” num trocadilho para virginiana. E ela diz que sente falta de suas diferenças e dos atritos comuns em qualquer relação entre mãe e filha, mas que sabe também que elas possuíam amor, cuidado e estavam sempre unidas segurando as mãos uma da outra.
Elas viveram coisas tão marcantes que se torna difícil destacar lembranças especiais, mas ela se recorda, por exemplo, de quando era criança e estava com dificuldade para dormir: “... ela pedia pra que eu fechasse os olhos e imaginasse um campo florido, muito colorido, com um lago, e que ouvisse o barulho das águas. Eu ia relaxando, me desligando, até dormir. Às vezes fecho os olhos e tenho essas imagens, imagino que Mia está por lá, em muito amor e muita luz”.
Recorda-se dos momentos de palhaçadas quando deitadas ficavam provocando risadas e cócegas uma na outra ou então quando ouviam e cantavam juntas em alto e bom som no carro, a música “Casinha na Marambaia” na versão da Maria Bethânia e Omara Portuondo. Diz Júlia: “... às vezes ouço e vem as lágrimas, mas hoje em dia elas não são de dor, mas de alento, de uma saudade de tanta coisa boa vivida com a minha mãe querida. Ela dançava com os ombrinhos e as mãozinhas com muita elegância. Mia era muito elegante e delicada, na sua vasta simplicidade”.
E ela conclui ao falar das lembranças de sua mãe, ressaltando os principais ensinamentos por ela deixados, como os de ser uma pessoa correta, lutar por justiça, igualdade, respeitar a todos de modo igual, ser gentil em muitas situações, cuidar de si mesma e não esperar as coisas aconteceram por si só, lutar, buscar pelo que for preciso e, acima de tudo, praticar o amor.
Miriam nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela filha de Miriam, Julia de Toledo Barros. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 21 de fevereiro de 2022.