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Orêncio Barbosa André

1935 - 2020

Memórias inesquecíveis de um ribeirinho de caminho simples, mas de coração rico em generosidade, fé e mansidão.

Os 85 anos de história de um homem de fé, coração manso e generoso contados por uma entre os oito filhos é de encher de saudade cada um que o conheceu ao longo do tempo, ou mesmo quem o esteja conhecendo neste minuto.

Orêncio nasceu e foi criado em uma comunidade ribeirinha às margens do Rio Arumanduba, em uma das ilhas do município paraense de Abaetetuba. Após casar-se com Dona Risolena, morou em outra das ilhas, a de Caripetuba. Com uma vida simples e humilde, foi incorporando em sua bagagem muita riqueza: suas histórias, aprendizados e um vasto conhecimento.

Teve que se dedicar ao trabalho muito cedo, fazendo de tudo um pouco, o que lhe atrapalhou o caminho dos estudos. Exerceu diversas atividades como pesca, fabricação de fogos, produção de tijolos e até serviços de enfermagem prestou, pois na região havia grande escassez desses profissionais.

Chegou um momento em que sentiu ser primordial a mudança para a cidade, algo como um investimento no estudo e no futuro dos filhos. Vendeu a pequena olaria e rumou com a companheira e os oito rebentos para Abaetetuba, onde se tornou feirante. Mas para que não faltasse o pão de cada dia, foi ele quem se multiplicou. Então, executou também as funções de marceneiro e sacristão. Como um bom homem de fé que sempre foi, trabalhou muito em Comunidades Eclesiais de Base, chegando a ser ministro eucarístico e sacristão da Matriz de Nossa Senhora da Conceição.

Seu esforço foi recompensado pelo orgulho que sentiu ao atingir o sonho de ver os filhos formados como professores. E a honra de ter alguns dos netos entre carreiras que considerava importantes, como Direito e Medicina então, nem se fala. E ainda teria muito mais alegria com essas gerações, afinal eram 21 netos e dez bisnetos. Vontade de viver não lhe faltava... planos para o futuro? Maria de Fátima, uma das filhas, entrega que ele tinha sim, e muitos.

Além disso, a filha diz que o pai adorava contar histórias do lugar onde foi criado e os personagens eram figuras simples como ele. Algumas tristes, porém outras bem engraçadas. Nesses momentos tinha um bordão que usava muito para argumentar suas falas: "A prova da verdade". Todos se acostumaram com essa sua marca. “Apesar da idade e do pouco estudo, meu pai apreciava a leitura. Sempre foi muito atento às causas sociais e políticas de seu tempo; na verdade, era um de seus assuntos favoritos. Invejável seu senso crítico e o quão esclarecido era.”

Provavelmente, como herança de sua origem, Orêncio cultivou por toda a vida gostos e hábitos simples, nunca foi vaidoso ou consumista, mas havia duas coisas que não dispensava: uma era estar sempre cheiroso ─ tinha muitos perfumes que, ou ganhava, ou ele mesmo comprava ─; e a outra, como bom paraense, era seu açaí com farinha de mandioca. Adorava a combinação que era item sagrado no almoço e no jantar.

A filha reconhece que o pai não sabia cozinhar... “Pelo menos nunca o vi fazendo nada na cozinha. Mas, mesmo assim, gostava de dar umas dicas pra mamãe sobre como preparar melhor alguns pratos. Ele devia ler ou ver em algum lugar, pois acabavam dando certo. Os dois tinham uma bela união e papai era muito apaixonado por ela.”

Amante de longas conversas, com muita sobriedade e coração manso, foi Seu Orêncio quem consolou a família pela perda do próprio irmão. Ademir André era seu irmão caçula e, como a mãe deles faleceu muito nova, o irmão, ainda garoto, foi morar com ele por um bom tempo. “Eles tinham uma relação bonita de carinho e meu pai já estava contaminado quando soube da partida de Tio Ademir, que também faleceu um mês antes por causa da Covid-19. Mesmo fragilizado, foi ele quem, com sua fé, nos amparou. Ele adorava ler a Bíblia e fazia disso um hábito logo ao acordar. Por isso, falava do Evangelho de Cristo com muita segurança e conhecimento”, relembra Maria de Fátima.

Com a justiça e bondade como seu norte, não permitia que ninguém passasse necessidade perto dele. Procurava ajudar como podia e sempre mantinha a calma. O mundo podia estar desmoronando ao redor, mas ele permanecia com a mesma mansidão. Caseiro, depois que se aposentou e não pôde mais trabalhar, ficou ainda mais recluso com suas leituras, as saídas tornaram-se bem raras. Isso fez a situação ser ainda mais dolorida para a família, pois o vírus foi buscá-lo em casa.

Além de ler, rezava... rezava muito, e seu terço era um companheiro inseparável desde que tomou conhecimento da doença. Distanciaram-se apenas quando Seu Orêncio precisou ser intubado e foi para a UTI. De tantas histórias, a que mais marcou, foi o apego a esse terço de madeira, que, pelas palavras de Maria de Fátima, ‘ficou surrado de tanto que ele rezou'. E ela completa a despedida reflexiva e equilibrada apesar da saudade: “Sabemos que, embora todas as orações não tenham sido o bastante para curá-lo, trouxeram serenidade e preparo para uma passagem tranquila para o Céu. Assim como milhares de vítimas que partiram direto, sem direito a despedidas, velórios e sepultamentos dignos, sem padre ou igreja, assim também meu amado pai o foi, inclusive, no silêncio da noite. O que conforta é sentir que, no Céu, foi recebido com festa, por ser um eleito de Deus.”

Orêncio nasceu em Abaetetuba (PA) e faleceu em Abaetetuba (PA), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Orêncio, Maria de Fátima Rodrigues André. Este tributo foi apurado por Hélida Matta, editado por Denise Pereira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 31 de dezembro de 2020.