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Paulo César da Silva

1954 - 2021

Sem posses e sem diplomas, lutou pela família e incentivou filhas e netos a jamais deixarem de estudar.

Natural de Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, Paulo César foi morar em Santo Antônio do Descoberto, Goiás. Casado com Maria do Socorro, teve três filhas e seis netos, para os quais foi um avô muito coruja. "Um pai maravilhoso e um excelente sogro, que tratava os genros como filhos e amigos", conta a filha Ana Paula.

Trabalhador, esforçado e exigente, exercia a profissão de pedreiro e nunca fez cara feia para nenhum trabalho. “Quando viemos embora para o Goiás, não tínhamos nada financeiramente, mas tínhamos tudo, porque ele era tudo pra nós. Seu maior medo era morrer e nos deixar desamparadas”, continua a filha com admiração.

“Quando mudamos para Goiás, a filha mais velha tinha 4 anos e a mais nova 8 meses. Meu pai quase não sabia ler, só assinava o seu nome, mas tinha uma sabedoria que não se encontra nos livros. Trabalhava de sol a sol para não deixar faltar comida no nosso prato. Quando eu era criança, nossa casa não tinha relógio, então ele ficava de madrugada no quintal esperando ouvir o primeiro ônibus passar para saber que estava na hora de ir trabalhar.”

“A vida dele não foi nada fácil, mas ele nunca reclamou. Acreditava que o esforço ia valer a pena. Nos incentivava a estudar para que tivéssemos uma vida menos 'lascada', como ele dizia, para que tivéssemos nosso emprego”.

O tempo foi passando, as filhas cresceram, e quando uma delas começou a fazer faculdade ele sentiu um orgulho tão grande que chegou a levar o jornal para o trabalho e mostrou para os amigos dizendo: “Eu não sei ler, mas minha filha não é burra não, minha filha vai fazer faculdade!”.

Não se cansava de dizer que era muito amado e que amava muito as filhas. E ele era mesmo visto por elas como um pai diferenciado, acima da média, companheiro, amigo, conselheiro, bravo quando precisava, mas que nunca lhes disse algo que as fizesse se sentir mal ou tristes.

"Quando os netos chegaram, tornou-se o vovô mais babão que conheci. Chamava-os de 'caboquinhos do vovô' e eles conseguiam tudo com ele. Eram tão apegados que um deles dormia todas as noites com o avô. Claro que ele tinha os momentos de broncas, mas rápido passavam”, conta a filha.

Festeiro, qualquer motivo era garantia de churrasco se tivesse um dinheirinho sobrando. A família se reunia, ele assava uma carninha em sua modesta churrasqueira, e era barulho de neto, conversa de genro, mãe dizendo que o arroz estava pronto e crianças querendo o primeiro pedaço de carne!

A filha recorda com saudade do modo de ser do pai: “Era bom. Ele nos unia. Quando possível, ia visitar a família em Ceará-Mirim e dizia que tudo de lá era melhor: a manga era mais gostosa, o clima era mais gostoso. Voltava sempre com queijo, manteiga, bolo-preto e peixe pra nós”.

Ela conta também que ele tinha pavio curto, mas não maltratava ninguém: "Seu jeito grosseirão fazia as pessoas gostarem e rirem das 'agonias' dele. Eu amava chegar na casa do meu pai e ficar conversando com ele ao pé da rede. Conversávamos, fofocávamos. Nos ajudávamos. Ele era tudo, nos unia. Muito cuidadoso com minha mãe: 'Deixa sua mãe brigar sozinha, não falem nada', dizia".

Demonstrava seus sentimentos com facilidade. "Quando recebeu a notícia de que tinha saído sua aposentadoria, ele pediu desculpas para aa atendente porque ia começar a chorar. E ela, toda solícita e empática, foi um anjo e lhe disse que podia chorar, porque que ninguém ia ver".

Depois de aposentado continuou trabalhando, mas pôde viver menos preocupado e sem necessidade de fazer mais tantos “bicos" nos finais de semana. Em 2020 teve que se afastar do trabalho por causa da pandemia. Quando a família pôde se reaproximar, depois do necessário afastamento, gostava de ficar brincando com os netos e, quando as famílias não apareciam, logo perguntava o porquê. Adorava conversar com as filhas ou ficar na calçada com algum amigo, colocando a prosa em dia.

No final de 2020 voltou a trabalhar, apesar do medo que sentia. Infelizmente, em março de 2021, contraiu a Covid-19 e faleceu em um hospital de Brasília.

Poucos dias depois de sua morte seu primeiro neto foi aprovado para os cursos de Mecatrônica, na USP e Medicina, em uma universidade pública do Sul — notícia que o deixaria muito feliz porque dizia para todo mundo o quanto ele era inteligente.

Ana Paula reafirma seu amor pelo pai dizendo: "Se existissem outras vidas, em todas eu queria ser filha do Paulo, pedreiro, nordestino, homem forte, trabalhador, marido, pai, vô, irmão, genro, a melhor pessoa que eu já conheci”.

“Que saudade que temos dele, muita falta nos faz. Guardo o pedaço de pau que ele usava para se balançar na rede. A vida perdeu a cor sem a sua força, amizade e cumplicidade. Vou amá-lo pra sempre. Jamais será esquecido. Uma das últimas palavras foi pra gente cuidar da nossa mãe como ele cuidava. Para sempre em nossos corações.”

E ela conclui sua homenagem valendo-se de uma frase de uma música, interpretada por Nelson Rodrigues: "Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim”.

Paulo nasceu em Natal (RN) e faleceu em Brasília (DF), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Paulo, Ana Paula Ferreira da Silva. Este tributo foi apurado por Lucas Cardoso e Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 5 de outubro de 2023.