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Paulo Ramon Duarte

1952 - 2021

A alegria simples da vida o encantava: bastava um fusca, uma lona e uma boa pescaria nos recantos das Gerais.

Paulo conheceu a esposa, Ângela, por meio de amigos comuns, em um barzinho bastante frequentado à época. Numa noite, enquanto seus amigos permaneciam à mesa tomando uísque e ele foi ao balcão pedir uma pinga, ela foi até ele, sentou-se e pediu uma para si também. Daí em diante, começaram a se envolver, se apaixonaram e se casaram.

Paulo e a esposa viveram juntos por quarenta e três anos, e tiveram três filhos: Paula, Renata e Fernando. Como pai ele sempre foi muito intenso em todas as suas emoções e atitudes. Era rigoroso na educação e bravo quando precisava, mas amoroso com os filhos. Paula conta que se recorda de quando ele a levava para lanchar e também de que ele só abraçava e beijava as filhas em dias de festa, depois de ter bebido sua cervejinha.

Avô de Maria Luiza e Débora, fazia tudo o que as meninas queriam, como é típico dos avôs. Maria Luiza, a que mais conviveu com ele, teve muitos momentos bons e compartilhavam os mesmos gostos. Ambos torciam para o Atlético Mineiro e adoravam uma pescaria. Certa vez, comprou um console de videogame dizendo ser para ele, mas, na verdade, jogava apenas quando a neta estava na casa dele. Certamente, ele foi o avô que toda criança gostaria de ter!

Paula conta carinhosamente um pouco da rotina de vida do pai: “Ele não gostava de viajar, exceto se fosse para pescar. Quando éramos mais novos, minha família almoçava fora todo domingo. Com o tempo deixamos de lado essa rotina, mas meu pai sempre prezou que a família estivesse reunida todos os dias durante o almoço. Para ele, este momento era muito satisfatório e quase um ritual. Quando cozinhava, muitas vezes queria nos surpreender e não contava o que faria, só para poder presenciar a nossa cara de surpresa quando servisse o almoço”.

Com muita dificuldade e força de vontade, Paulo conseguiu formar-se em Direito, mas de início não exerceu a profissão. Ainda recém-casado, decidiu com a esposa abrir uma loja de roupas e bijuterias em um cômodo comercial onde montavam as próprias bijuterias.

Ângela trabalhava como professora e não ficava o dia todo na loja que, com o tempo, acabou sendo fechada. Na sequência, Paulo abriu um bar e lanchonete que funcionou por mais de vinte anos. Mais tarde contratou uma funcionária para trabalhar durante o dia, iniciou suas atividades como advogado e somente à noite ia para o bar. Foi assim que construiu sozinho e pouco a pouco o seu nome como Advogado Cível, conquistando uma vasta carteira de clientes fiéis. Era um advogado humano, que ajudava as pessoas.

Quando se aposentou, aproveitava a maior parte do seu tempo maratonando séries e, às vezes, em uma só tacada, assistia a uma temporada inteira. Assim que terminava, saía dando spoiler para todo mundo. Também passava horas assistindo a filmes, desde que não fossem de terror!

Paulo sempre gostou muito de conversar e fazia isso até sozinho. Quando estava com alguém, sua voz se destacava das demais e os filhos brincavam que ele não gostava de "passar o microfone", no sentido de que tentavam falar e ele continuava o assunto sem lhes dar espaço. Os amigos o adoravam, as risadas eram altas, a conversa fluía. “Quando nos reuníamos para tomar uma cerveja então, nem se fala! Longas conversas e inúmeras gargalhadas. Falava muito alto! Quem não o conhecia, pensava que ele estava brigando com alguém”, conta Paula.

Pescar era o que ele mais gostava de fazer e não era daqueles pescadores que alugam um ônibus e vão para o Pantanal. Gostava mesmo era de pescar em Minas Gerais nos lugares mais próximos, para onde podia ir e voltar num mesmo dia ou que tivessem alguma casa onde pudesse dormir. Muitas vezes acampava com amigos valendo-se de um fusca e de uma lona! Não poucas vezes levava o filho Fernando para acompanhá-lo e fazia o mesmo com Paula, nos lugares que permitiam voltar para dormir em casa.

Ela conta uma das histórias marcantes com o pai envolvendo pescaria: “A história que compartilho talvez não seja a mais interessante, mas, para mim, é a mais importante: de quando minha filha foi pescar pela primeira vez com o vovô. Com o passar do dia, ela voltou à beira do rio e procurou o avô com quem ela havia pescado de manhã. Ele não estava. Então, para acalmá-la, meu marido tentou pescar ao seu lado, mas ela disse que não queria pescar com ele, mas sim 'com o vovô, que pegava peixe'. Tempos depois, meu pai disse que estivera na outra beirada porque minha filha não parava de falar e assustava os peixes. Foi a única vez que pescaram juntos!”

Apesar de muito sistemático, Paulo tinha amigos de todas as idades, a maioria de longa data, mas outros conquistados mais recentemente. Paula diz que uns iam e vinham, outros permaneciam e complementa: “Não era fácil conviver com o jeito dele! Entretanto, ele era o amigo com quem se podia contar a toda hora, para o que fosse. Os seus conselhos eram sempre válidos e as conversas muito espirituosas. Não havia uma só pessoa que o conhecesse, que não quisesse vê-lo outra vez”.

A família não sabe como surgiu o seu dom para a cozinha, mas acredita que possa ter vindo de sua mãe, que cozinhava muito bem, ou do fato de ele ter tido que se virar sozinho desde muito novo. Em casa, a esposa nunca cozinhou, por detestar cozinha, então, desde sempre, as primeiras recordações das filhas são dele sempre preparando as refeições.

Paulo valia-se do seu dom no bar fazendo bola de carne, pé de porco e dobradinha, pratos extremamente elaborados que, por suas mãos, tornavam-se divinos, com um tempero inexplicável, que ninguém nunca sabia e nem saberá replicar.

Seu gosto musical era muito eclético. Ouvia de tudo, mas escutava com maior frequência Jovem Guarda, Agnaldo Timóteo e Nelson Gonçalves. Ele, inclusive, amava a canção “Naquela mesa” interpretada por este cantor, talvez porque o fizesse lembrar de seu pai, e que provoca também em Paula, cada vez que a ouve, um misto de sentimentos e recordações que a fazem pensar serem os mesmos sentimentos que ele experimentava.

Atleticano, não assistia aos jogos do seu time do coração: preferia ouvir as partidas em casa e sozinho, sempre pela Itatiaia, no rádio que pertenceu a sua sogra. Em dias de jogos, concentrava-se. Ninguém o via gritando nem torcendo. No máximo, proferia uns xingamentos quando o Galo perdia. Tinha alguns bonés e uma blusa com a inscrição Atlético MG e foi de Paula que ganhou de presente a primeira camisa oficial do time.

Vaidoso, sempre gostou de inúmeros aromas: cremes, óleos hidratantes e perfumes. Entretanto, não tinha um cheiro específico. Conta Paula que, quando ele faleceu, escolheu uma jaqueta camuflada do exército, para guardar de recordação. Como ela ainda não havia sido lavada, nas poucas vezes em que a usa evita passar qualquer perfume, “para que o meu cheiro não se misture com o dele. Não era suor, não era nada, era apenas o aroma dele...”, diz ela cheia de saudade.

Paula não se recorda do pai alimentando sonhos porque tudo o que desejou conseguiu adquirir. No entanto, desde o falecimento de sua mãe, dizia para todos que, quando o casarão da família fosse vendido e a herança dividida, não ficaria com o dinheiro e sim daria parte para o filho comprar a sua casa própria e, com a outra parcela, quitaria o restante do financiamento imobiliário de Paula. Respeitando essa sua vontade, logo após sua partida houve um acordo entre seus irmãos e sua esposa e agiram conforme a vontade dele.

Paula destaca a participação do pai em momentos decisivos de sua vida: “Algo que me marcou profundamente foi quando me separei do meu primeiro marido. Naquele momento, inúmeros sentimentos inundavam a minha mente e tinha muito receio de como o meu pai reagiria se tivesse de voltar para a casa dele. Mesmo assim, quando decidi minha vida, prontamente, comuniquei o ocorrido ao meu pai, que me disse as seguintes palavras: 'Eu estava só esperando você me contar. Pensa que eu não te via com sua mãe, chorando e se lamentando pelo seu casamento? Sempre vi. Esta casa sempre será sua!'".

Paula relembra um pouco do que aprendeu com o pai: “O ensinamento que ele deixou a todos nós é algo simples, mas de grande valia: podem nos tirar tudo, menos nosso nome. Então, independentemente das circunstâncias, devemos ser honestos e honrar a nossa reputação”.

“Ele era a nossa base, o alicerce da família. Foi internado no dia do seu aniversário. Meu pai e eu tínhamos uma ligação muito forte! A falta que ele me faz é algo indescritível! Enquanto escrevo estas palavras, lágrimas me cobrem o rosto... Apesar de termos passado por momentos difíceis na minha adolescência, agora, sendo mãe, entendo um pouco desse excesso de zelo e preocupação que ele sempre teve por mim. Foi-se muito cedo, meu pai. Então, posso dizer, com todo orgulho, o quanto ele foi e sempre será um paizão!”, conclui Paula.

Paulo nasceu em Mateus Leme (MG) e faleceu em Pará de Minas (MG), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Paulo, Paula Dias Duarte. Este tributo foi apurado por Lucas Cardoso e Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 24 de julho de 2023.