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Renato Rocha de Sousa

1969 - 2020

Era a música da casa, dono de uma risada solta, de uma palavra gentil.

O amigo e confidente da filha Renata. Um pai exemplar para o filho Italo. O companheiro de vida da Socorro.

Esta é uma carta aberta da família de Renato: de seus dois filhos Renata e Italo e de sua esposa, Socorro.

De Renata para seu pai:

Uma palavra gentil, um olhar doce, uma mão estendida, assim era meu pai. Estava sempre disposto a ajudar quem precisasse e fazia de tudo para evitar conflitos. Também detestava mentiras e preferia o diálogo à discussão.

Tinha paixão pelo flamengo e adorava ouvir músicas antigas na rádio, tomando seu café preto no copo de vidro de extrato de tomate (ele amava esses copos). Meu pai gostava de ouvir música alta e ouvia de tudo, rock, sertanejo, forró, brega, pop, música clássica. Eu adorava ouvir suas músicas, ele era o som da casa.

Meu pai cheirava a perfume importado, não por luxo mas porque era alérgico a colônias e águas de cheiro. Suas camisas eram na maioria gola polo, lisas e sem bolso, elas deixavam ele com ar de pai, de chefe de família. Particularmente, eu achava que tudo isso era a cara dele, como se ele tivesse inventado essa moda.

Seus passatempos favoritos eram: ver os jogos do "mais querido", ouvir música, tomar sua cervejinha, ver um filme na sala com a mamãe, abraçar o cachorro, ir à praia cedinho caminhar.

Ele me ensinou muitas coisas também e à isso sou muito grata. Dentre as suas lições me lembro das conversas que tínhamos, falávamos sobre tudo, nossos medos, ansiedades, sonhos, projetos. Meu pai foi também meu amigo, confidente, meu primeiro amor. Aquele que me ensinou a resolver questões de banco e outras burocracias que fazem parte da vida adulta, me ensinou a falar com as pessoas, a ser gentil e educada. Mais do que isso: me ensinou a amar a vida e as pessoas, a ter fé em Deus e em mim.

Esses dias percebi que existem tantas coisas sobre meu pai que eu não sei. Qual sua cor favorita? que lugar ele gostaria de conhecer numa viagem? quais eram seus planos pra daqui há cinco ou dez anos? São perguntas que meus familiares podem responder, mas que eu queria ter perguntado à ele. Sinto que não o abracei o suficiente ou que disse "eu te amo" o quanto queria.

Ainda assim, é inegável o amor que recebi dele e o quanto ele foi amado nesta vida e continuará a ser amado depois de partir dela. Eu o amo com todo meu coração e sei que ele vive em mim e em cada pessoa que ele tocou com seu jeito bondoso de ser.

Me orgulho muito do pai que tenho, e digo "tenho" e não "tive" porque ele É meu pai, ainda no presente, e não no passado apenas. Ele vive em mim e continuará a viver até o dia em que estivermos todos juntos, eternamente.

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De Italo para seu pai:

Meu pai viveu uma vida honesta e de muito trabalho. Era um homem de muitas virtudes, que se manteve sempre fiel aos seus valores. Um cidadão correto, pai dedicado, esposo carinhoso, flamenguista apaixonado, profissional exemplar.

Me ensinou através do diálogo e do exemplo. Era contra brigas e violência, sabia ser gentil e educado. Um Homem de verdade. O vi em momentos de força e de fraqueza, conheci-o em sua intimidade, convivi com ele, decorei seus gostos e adotei seus hábitos. Por isso tudo dou graças a Deus, e por todo o tempo que tive o privilégio de tê-lo em minha vida e de ser seu filho.

Sinto que ele ainda vive em meu coração e de minha família. Ele vive em nossas lembranças e nos detalhes de cada coisa que foi dele, cada lugar que passou e pelas lições que ele deixou. Eu o amo e sinto que não disse isso o suficiente, mas também tenho certeza de que ele sabia disso. E que ele me ama também.

Ele sempre viveu com alegria minhas realizações: me mantinha motivado para as provas que enfrentei, me ensinou o valor do estudo, me levou para matricular na faculdade todas as vezes que passei e para desmatricular quando desisti. Vibrou de forma única quando entrei na escola de Medicina. Falava com orgulho e amor de mim e da minha irmã.

Meu pai comia pizza com ketchup, tomava café preto, via o jogo na TV enquanto ouvia o rádio, não gostava de retranca, torcia pela seleção na Copa, assistia Formula 1 de madrugada e me contava o resultado da corrida de manhã. Me ouvia com atenção enquanto eu explicava algum assunto qualquer, era prolixo e engraçado. Ele também adorava música, ouvia de tudo, e tudo que ele ouvia era bom.

Quando recebi a notícia de seu falecimento me senti sem chão, desestruturado e fraco. Senti que não estava preparado para ser adulto, para ser homem. Desde criança ele sempre foi um modelo para mim, sempre quis ser como ele, quis seguir a mesma profissão por um tempo, quis continuar seus sonhos e obras. Mas ele sempre me encorajou a buscar o meu próprio espaço, sonhar meus próprios sonhos e sempre me disse: “Aqui é muito pequeno pra vocês, vão mais longe”.

Sinto que posso seguir seus ensinamentos e alcançar qualquer coisa pois sei que não estarei só, sempre terei o apoio e o amor de meu pai para me amparar e me impulsionar.

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De Socorro para seu esposo:

Quando pedi a Deus um marido achei que seria apenas um companheiro, contudo fui surpreendida com um bom homem, autêntico e honesto, que sempre prezou o bem estar de todos e principalmente a nossa família.

Nós sempre fomos sua prioridade, e talvez por isso teve de ser retirado de nós de uma maneira tão cruel, tão injusta. Você nos protegeu até o último momento.

Os momentos felizes que passamos juntos, os difíceis e todos os nossos 29 anos de matrimônio são preciosos pra mim. Quero lhe dizer que você é importante e sempre será em minha vida.

Você deixou um legado que quero continuar. Quero ser orgulho pra você, pois sei que está torcendo por mim. Quero deixar para nossos filhos um bom exemplo e sei que isso te deixará feliz. O seu modo de viver será sempre um modelo de vida pra mim.

Eu te amo muito, Gato!

Renato nasceu Teresina (PI) e faleceu São Luís (MA), aos 50 anos, vítima do novo coronavírus.

História revisada por Beatriz Bevilaqua, a partir do testemunho enviado por filha Renata Sousa, em 21 de maio de 2020.