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Rosemary Nassar França

1962 - 2021

O vermelho do esmalte usado por ela era único, pois era fruto da criativa mistura de três outras cores.

Filha, irmã, esposa, mãe, sogra, avó, tia, amiga, uma pessoa querida, com quem se podia contar sempre.
Vaidosa, caprichosa, humilde e com um coração grande e bom. Foram muitos os papéis, as qualidades e os adjetivos necessários para tentar definir Rosemary. Uma mulher forte e guerreira que lutou por seus sonhos e, principalmente, pelas filhas Cris e Greicy.

De manhã, ao acordar, a vaidosa Rosemary logo passava batom nos lábios. As sobrancelhas rotineiramente bem feitas e finas eram uma constante. Entre as diversas atividades cotidianas, semanalmente, ela reservava um tempo para fazer as unhas que sempre estavam muito bem cuidadas. A cor do esmalte era só dela, porque acontecia a partir de uma mistura feita pela manicure, no salão que frequentou por anos. O resultado era um tom vermelho, puxado para o bordô, fruto da mistura das cores maçã do amor, café e rebu. Unhas pintadas, voltava para casa com o habitual contraste entre o tom da pele e o vermelho do esmalte.

Paciência não era seu forte. De temperamento forte, de vez em quando “explodia, mas logo passava e tudo ficava bem novamente” lembra a filha Crislayne. Rosemary era “aquela mãe estressada e carinhosa ao mesmo tempo e na mesma medida”.

No transcorrer dos dias, Rosemary era do tipo de pessoa que não guardava nada que tivesse vontade de dizer e “falava em tom de brincadeira, reclamando do que não lhe agradava.” Quando percebia que estava com a razão, esbravejava e mantinha a posição. Nem pedir desculpa por alguma palavra mal colocada ela aceitava. Em situação contrária, quando notava que o seu ponto de vista não era o mais correto, logo emendava um “não falei por mal”.

Como filha, Rosemary dividiu os carinhos e cuidados dos pais Osmário e Helena com os irmãos Maria Helena, Marli, Luiz Carlos e José Carlos. Como mandava a tradição, dona Helena cuidava da casa e dos filhos enquanto seu Osmário, que era caminhoneiro, pegava a estrada.

Contudo, entre as memórias da infância e juventude, compartilhadas por Rosemary com a filha Crislayne, há uma cheia de encanto, que acontecia sempre ao amanhecer. Conforme a tradição sulina, seu Osmário, logo que acordava, pegava sua cuia e preparava o chimarrão bem quente. Rosemary também acordava de madrugada, junto com o pai. E os dois iam para o lado de fora da casa para perto do muro baixo, onde ouvindo radinho de pilha, e na alternância da cuia, saboreavam o mate enquanto conversavam.

O capricho e o zelo de Rosely com a casa e suas coisas era singular. Quando jovem, certa vez a irmã Maria Helena usou uma roupa de Rosemary sem autorização dela. Foi a gota d’água para uma daquelas brigas acaloradas entre irmãos. No final, foi necessário a intervenção de terceiros, tamanha a contenda. Contudo, ligeira, Rosemary conseguiu escapar daquela enorme confusão.

Antes do casamento com seu João Carlos, Rosemary trabalhou numa loja de autopeças da cidade. No estabelecimento ela era recepcionista. Depois do casamento, a pedido de seu João, passou a cuidar da casa e das filhas, como era a tradição daqueles tempos.

Rosemary foi uma esposa muito cuidadosa. A casa estava sempre limpa, as panelas sempre brilhando, não ficava sequer um fio de cabelo no chão. Crislayne recorda, com um ar de sorriso na voz, que todos tinham o chinelo para usar do lado de fora da casa. Quando alguém esquecia e entrava com outro calçado, Rosemary não deixava passar e mandava voltar. “Ai de quem entrasse em casa sem o chinelinho”, completa a filha.

Como o marido, seu João Carlos, era caminhoneiro e passava temporadas fora, a cada volta dele, Rosemary preparava um banquete. Os dias que antecediam a chegada de seu João eram marcados por muita movimentação na cozinha, no preparo de bolos, bolachas e tortas que ela sabia que ele gostava. Cabe ressaltar que, se ele não tirasse o sapato e calçasse o chinelo, era bronca na certa, logo na chegada.

Outra delícia que Rosemary preparava como ninguém era a sua inconfundível maionese. Crislayne diz que “não tem como fazer igual. Mesmo quando alguém segue a receita passo a passo não fica igual, pois sempre fica faltando o amor com o qual ela preparava a iguaria”, explica a filha. A batata frita sequinha e a torta portuguesa com pão e carne picadinha e suas panquecas eram muito saborosas. Depois do casamento da filha Greicy, várias vezes Rosemary preparava duas panquecas e mandava uma para a casa dela, pois ficava pertinho.

Costumeiramente Rosemary ficava um pouco aflita quando seu João estava em casa. É que ele era dessas pessoas que gostava de receber visita de amigos e parentes. E na sina de manter a casa sempre organizada e limpa, ela precisava trabalhar um pouco mais para deixar tudo do jeito que gostava. O certo é que foram mais de 25 anos de convivência.

No passar dos dias, enquanto cuidava da casa, de suas samambaias ou cozinhava, Rosemary gostava de ouvir música. Durante o dia todo, os “modões” faziam parte da rotina da casa, pois ela ouvia Mato Grosso e Matias, Milionário e José Rico, Chitãozinho e Chororó, entre outros.

Noutros momentos, ela se acomodava na sua cadeira e fazia crochê. Era comum que ela tecesse enquanto ouvia a pregação do padre Reginaldo Manzotti, todos os dias, às dez da manhã. Entre os sonhos dela estava o de fazer uma viagem até Curitiba, no Paraná, para conhecer o padre pessoalmente.

Ninguém nunca ousou colocar algum apelido em Rosemary, pois se ela não gostasse a bronca era certa. Assim, o máximo que acontecia é que as pessoas a chamassem carinhosamente de “Dona Rose”. Foi assim, por exemplo, na paróquia de Nossa Senhora de Caravaggio, onde ela participava das missas. Em casa, sempre que podia, Rosemary estava fazendo uma novena.
Mesmo não sendo de muitas palavras, cativou uma amiga especial, dona Viceni, mãe do primo Leandro. As duas se davam muito bem e amavam conversar sobre a vida.

Rosemary nunca foi de ser preocupar com luxo. Contudo, uma de suas tarefas prediletas era sair e comprar coisas para a casa, tais como colchas, toalhas de mesa, toalhas de banho bordadas e roupas de uso pessoal. Ela ficava zangada quando os olhos gostavam de algo na vitrine e a peça não servia. Quando isso acontecia, “já não queria mais nada” conta Crislayne, que guarda com carinho uma dessas toalhas de banho bordadas e uma colcha branca com flores vermelhas.

Outro momento de pura felicidade eram as saídas da cidade para o contato com a natureza. Rosemary nunca recusava convites para ir aos “pesqueiros" ou sítios no entorno da cidade de Campo Mourão (PR).

Crislayne ressalta que humildade, honestidade, empatia e a capacidade de se doar ao outro são alguns princípios que aprendeu com a mãe. “Se ela percebesse que alguém estava precisando de algo, ajudava de coração, sem se importar se essa pessoa poderia dar algo em troca” explica a filha.

Num tempo em que esteve adoentada, Crislayne também conviveu com a força e capacidade de enfrentar desafios, tão marcantes na personalidade de Rosemary. Ainda quando menina, a filha teve um problema renal que inicialmente foi diagnosticado como um tumor maligno. Apesar de muito triste e nervosa, Rosemary nunca perdeu a fé e a esperança de que a filha ficaria curada. “Houve dias em que ela ficava tão nervosa que se perdia dentro do hospital”, relembra Crislayne. Ao final de tudo, os médicos perceberam que não era nada tão grave como um tumor e a filha ficou bem. O mesmo aconteceu quando, no auge dos seus 48 anos, ficou viúva. “Nunca mais quis saber de casar novamente e dizia que nem a morte era capaz de separá-la do amor do meu pai” recorda Crislayne.

Por esses e outros acontecimentos, a ligação entre dona Rose e a filha sempre foi muito intensa. Diariamente ela ligava, por volta de nove da manhã, para saber se Crislayne almoçaria em casa. É que Rosemary não gostava de almoçar sozinha e insistia até conquistar a companhia da filha no momento da refeição. Se ela demorasse a chegar, ligava novamente perguntando se já estava chegando e pedindo “vem logo”.

Atualmente, já casada, Crislayne mora na mesma casa onde cresceu com os pais e a irmã Greicy. Vez por outra também sente falta das ligações matinais convidando para o almoço. Saudosa, ela conta sobre a falta do “bom dia. Ela deitava na cama e nós ficávamos ali conversando...”

Numa atitude de pura gratidão e amorosidade, Crislayne faz questão de destacar: “foi e sempre será meu orgulho, a dona da melhor e mais gostosa maionese, do feijão com caldinho grosso e bem temperado; da chateação pela demora em vir almoçar; a dona de casa mais caprichosa e a mãe mais doida e amorosa que eu poderia ter! Amo você eternamente! Obrigada por ter sido tão especial e cuidar tão bem da nossa família!”

Dona Rose, que não gostava de dias chuvosos porque sentia saudades do passado, segue viva nas receitas anotadas num caderno, que ela quase nunca usava por saber tudo de cabeça. Vive também nos princípios plantados no coração das filhas e em alguns dias, quando ao abrir a porta de casa, Crislayne sente que “parece que ela está lá para me receber”.

Rosemary nasceu em Campo Mourão (PR) e faleceu em Campo Mourão (PR), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Rosemary, Crislayne Nassar França. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 15 de agosto de 2023.