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Ruth Trindade Santana

1947 - 2020

“Só tá falando buzo”, decretava, rindo, quando ouvia uma conversa sem futuro.

O bom dia começava cedo e era longo. "Bom dia, Alcione! Bom dia, Yasmin!" A casa cheia era seu maior prazer. "Bom dia, Izabel! Bom dia, Amanda!" O sonho de Ruth era ampliar o quintal. Ter mais espaço para caber mais plantinhas. "Bom dia, Sara! Bom dia, Aldimara!" Afinal, a família era grande e ainda faltava quem emprestasse o nome para Ruth batizar suas flores.

Quando todas as plantinhas recebiam o cumprimento matinal, ainda sobrava tempo para uma prosa. Um olhar atento para uma folha nova ou, quem sabe, um florescer durante a noite. Só quando todas eram acordadas e vistas, Ruth fazia um cafezinho.

A vida então seguia a rotina dos últimos anos: preparar o almoço, sentar-se na cadeira de balanço que acomodava a costura ou o caça-palavras. A TV ligada. Mas o programa da tarde, de toda tarde, era certo: visitar a caçula. “Alcioneeeeeee”, era o anúncio de que havia chegado. Juntas, passavam as tardes sendo companhia uma da outra.

Estar em casa era viver intensamente a família. A casa sempre foi um lugar de acolhimento e de celebração. Foi também a casa, que serviu de encontro para o amor. Quando ainda era jovem e vivia na casa dos pais, uma partida de baralho reuniu amigos. Não se sabe o resultado do jogo, mas, naquela noite, foram dois os grandes ganhadores: Paulo e Ruth.

A união gerou Carlos Augusto, Almir, Aldimara, Aldimar e Alcione. Casa cheia sempre pede uma boa comida. E como Ruth sabia cozinhar! Os pratos favoritos da família eram strogonoff, tacacá, assado de panela, galinha caipira e lasanha. Tudo feito por Ruth. Difícil era escolher um só para os aniversários, natais e anos-novos, encontros certos da família.

A viuvez precoce não tirou a juventude da alma de Ruth. “Minha mãe tinha o sorriso mais verdadeiro. A única que conseguia fazer a gente sorrir. Ela contava piadas e era a companhia mais gostosa! Além de cheirosa e linda. A melhor mãe do Universo!”, declara Alcione, a caçula.

Mas foi por outro papel que Ruth ficou conhecida em seus últimos anos: Vó Ruth, a que mimava e sabia cada gosto dos netos. A avó que amava cada um deles. Philippe, Patrick, Arthur, Amanda, Samara, Yasmin e Izabel. Um amor grande e inexplicável. Como mãe, foi a melhor avó.

A matriarca, para além dos conselhos, também sabia identificar rapidinho quando ouvia uma conversa sem futuro. “Só tá falando buzo”, sentenciava. Ria e deixava de besteira. Ia fazer o que importava: ir pra calçada na frente de cada “pegar um ventinho”. Arejar as ideias, espantar o calor, curtir a vista.

Da rotina com Ruth fica a saudades de ouvi-la contar sobre seu dia a dia, seus sonhos e o jeito divertido de viver e de sempre enxergar o lado engraçado da vida, fazendo qualquer acontecimento virar piada. Mas a filha Alcione sabe que o Céu está em festa. “Com certeza minha mãe está fazendo os anjos sorrirem.”

Ruth nasceu em Marapanim (PA) e faleceu em Ananindeua (PA), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Ruth, Alcione Trindade Santana. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Carolina Margiotte Grohmann, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 19 de dezembro de 2020.