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Ruth Vieira Galindo

1937 - 2020

Muito religiosa, ficava feliz quando os netos pediam a bênção.

Crescida numa família de dez irmãos, a pequena Ruth, primeira das mulheres, era vista como o xodó do seu pai, talvez pelos cuidados que a paralisia infantil logo aos dois anos de idade exigira. Felizmente a menina, “curada por conta do tratamento caseiro com leite de égua”, como conta a irmã caçula Alzira relembrando as palavras da mãe, cresceu forte e saudável.

A rotina no sítio, o trabalho na roça e as tarefas domésticas a impediram de estudar quando criança, e por isso não sabia ler nem escrever. Mas aprendeu com a vida. Ruth cuidou de todos os que nasceram depois dela.

Quando criança, tirava leite de vaca diariamente para alimentar a família e, às escondidas dos pais, dava uma porção para as irmãs menores venderem para a sorveteria da cidade, quando elas caminhavam para a escola, a quilômetros de distância de onde moravam. “Ela punha um pouco de água no leite para render mais e o pai não perceber”, brinca Alzira, e com isso as meninas ganhavam um dinheirinho por conta própria.

Ruth tinha a habilidade de fazer crochê e bordar, “foi a única, era prestimosa e até me ensinou”, rememora a irmã Maria, que completa a descrição: “era calma, quieta, correta, maravilhosa”.

O namoro com Ângelo, na varanda da casa de fazenda, também acontecia rodeado pelas irmãs, especialmente a caçula, que permanecia em vigia constante até ganhar umas balas do moço para se distrair na brincadeira e deixar livre a conversa a dois. Os encontros e os bailes na juventude renderam a união do casal por quase cinquenta anos e a criação das cinco filhas: Luísa, Lídia, Lourdes, Orceli e Gabriela.

O casamento, aliás, foi um grande evento para os padrões locais. Aconteceu na igreja de São José, no município paranaense de Rolândia, e a festança foi preparada no sítio, no terreiro de café, usando inclusive os fornos e a lenha da vizinhança. “Muita fartura na comida, cozida e servida nos próprios tachos. Mas bolo mesmo não teve, naquele tempo era difícil quem fizesse”, narra a irmã Lourdes. E ela completa com diversão: “no sítio não tinha lua de mel, mas nove meses depois já vinha a primeira criança. Com a Ruth não foi diferente”.

A vida rural depois das núpcias continuou sendo de grandes desafios: “casas pobres feitas de coqueiros, madeiras, sem luz elétrica, água de poço, dificuldades financeiras”, comenta a primogênita, que acrescenta: “ela ajudava nosso pai na roça, na colheita de café e plantação de arroz, feijão, milho, cuidava da horta e colhíamos juntas os legumes e frutas. Fazia fornadas de pães, além de pamonha, curau e outras delícias com milho verde”.

A dedicação à família e aos cinco netos, quando eles vieram, fizeram de Ruth a “segunda mãe” de todos. Resiliência era sua marca registrada. Nunca reclamava das coisas ou de qualquer cansaço. Com o passar do tempo, a vida ficou mais leve e Ruth, serena. Para os netos, muito apegados a ela, a avó era exemplo de gratidão, silêncio, generosidade, contentamento, e isso ficou marcado, além da memória, na própria pele. Sim, pois todos decidiram homenagear a vó Ruth com uma tatuagem.

De prazeres simples, Ruth gostava de comer muito, especialmente arroz, tomar refrigerante, caminhar na praia, ir à academia e, mais do que tudo, cuidar do seu jardim e cultivar flores.

“Para onde eu olho no seu quintal tem um pedacinho dela nas plantinhas. Convivemos sempre na mesma casa, sou a neta mais velha, ela era companheira. Viveu com muita luta e sabedoria. Foi uma imensidão de mulher”, emociona-se Ataísi. “Ela me falava que queria me presentear, mas ela em si era meu presente.”

Ruth nasceu em São Carlos (SP) e faleceu em Rolândia (PR), aos 82 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Ruth, Ataísi Gracieli Galindo da Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Walker Barros Dantas Paniagua e moderado por Rayane Urani em 16 de agosto de 2021.