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Sandoval dos Santos Almeida

1961 - 2020

O amor, que estava sempre na garupa da sua bicicleta, deu a ele muitos amigos e uma família.

Sandoval... Um nome não muito comum na região onde nasceu e que ao longo da vida, foi transformando-se pela influência do jeito baiano de ser. Nas relações de parentesco e amizade ele foi sendo chamado também de “Sandó”, “Dó” e “Sandoval da EMASA”. Com uma vitalidade incomum, viveu intensamente cada momento da vida.

Alegre, esbanjava sorrisos e com sua animação transformava os ambientes onde chegava graças a seu alto astral. Sandoval, circulava por Itabuna, na Bahia, em sua bicicleta, meio de transporte mais utilizado por ele. Em seus cinquenta e oito anos de vida, a amargura e a tristeza não tiveram muito espaço, e se Sandoval vinha pedalando, podia saber que na garupa, junto com ele, estava também a felicidade.

Na EMASA, empresa municipal de saneamento básico da cidade, Sandoval, além dos trabalhos regulares como técnico em eletrônica, cultivava junto com os colegas de canteiros de onde saiam muitos alimentos para todos que quisessem. Responsável e organizado, sempre foi tratado com todo respeito. E quando alguém dizia que o “Sandoval da EMASA” tinha chegado, a alegria estava garantida.

Teve duas famílias. Na biológica, ele e os irmãos Silvan e Silvana foram fruto do amor de Leonardo e Dalmira. Mesmo depois do falecimento dos pais “Sandó” e Silvan seguiram morando juntos, numa relação de amizade e parceria. Eram companheiros de carinho e cuidado um com o outro.

Da filha biológica Márcia, nasceu o neto Bruno, para quem “Dó” foi como um pai. Sempre atento, em decorrência de algumas questões envolvendo a filha, Sandoval e os irmãos assumiram a educação do neto. “Vovô”, como era chamado por Bruno, apoiava e admirava tudo o que neto fazia, mas quando percebia que ele poderia fazer algo não aceitável ou se envolver em alguma confusão logo aconselhava. As conversas, com alguma regularidade tinham início com a frase “Ô Bruno, rapaz, eu já não te falei que...”.

Foi também graças ao apoio e suporte de Sandoval que o neto conseguiu ir para Vitória, no Espírito Santo. Para superar a saudade e a distância, os dois estavam sempre conectados através do celular. Nas mensagens e ligações, Sandoval incentivava o neto, acostumado aos mimos da casa do avô, a não desistir de seu sonho e a permanecer na capital capixaba.

Rafael era um sobrinho também muito querido e especial para “Sandó”. Ele falava sempre com muito orgulho do rapaz pelo fato de ser muito estudioso. Não perdia a chance de contar como ele se desenvolveu e se jogou no mundo encarando os desafios.

A segunda família de Sandoval foi adotada por seu generoso coração. De um namoro com Angélica, brotou uma intensa relação também com outros integrantes da família dela. Aos poucos, Sandoval foi cativando a todos e mesmo depois do término do namoro, seguiu convivendo intensamente com a família.

Foi assim que dona Alice tornou-se uma segunda mãe que fazia todas as vontades dele. Logo que “Sandó” chegava, dona Alice pedia: “pega o café do Sandó, que eu sei que ele gosta”. Naquilo que precisasse, ele sempre estava disposto a realizar pequenos reparos na casa que muito agradavam e ajudavam dona Alice. Tinha também os mimos que Sandoval reservava para ela. Um dos que ela mais gostava era o “Banana Real”, um pastel recheado com banana e depois de frito passado no açúcar com canela.

Aniran, outra filha de dona Alice, era como uma irmã para Sandoval. Com cuidado fraterno, os dois estavam sempre próximos um do outro. Ele era como um irmão super protetor para ela e chegava até a ter ciúmes. De vez em quando brigavam por alguma coisa, mas logo se acertavam.

Com a filha de Aniran, também chamada Alice, a relação de Sandoval era de pai e “filha de coração”. Alice fala dele com um uma saudade repleta de carinho e descreve o “pai do coração” como um espírito jovem, nobre, que não carregava preconceitos. “Sandó era a pessoa que me dava base; que pegava na minha mão e ajudava a realizar meus sonhos.” Sempre com palavras de incentivo, fazia questão de valorizar as qualidades da “filha” e nas inúmeras conversas que tiveram, Alice encontrava sugestões em momentos em que estava indecisa.

O amor entre Sandoval e Alice beira a instância do inexplicável. Desde quando ela ainda estava na barriga da mãe, “Sandó” já expressava uma ligação forte com a menina. Ao longo do crescimento dela, o amor entre os dois foi sendo fortalecido e cultivado em ações concretas no dia a dia.

Do principal ensinamento de “Sandó” sobre a importância de aproveitar bem a vida e os bons amigos, Alice nunca vai se esquecer. O mesmo vale para o abraço dele, único e que sempre passava sensação de carinho, amorosidade, cuidado, conforto e segurança. Saudosa, Alice faz questão de dizer que o mundo está carente de pessoas incríveis como ele.

O que Sandoval mais gostava era de ensinar Alice a cozinhar. Ele chegava, colocava uma música no volume máximo e os dois começavam a preparar a refeição. Em meio a muito axé, pagode e funk a preparação do alimento parecia uma festa. Um dos pratos marcantes de “Sandó” era o “Feijão Adubado”. Um feijão tropeiro feito com porções generosas de torresmo, calabresa e muito mais ingredientes. Mas preparava também saborosos peixes, caranguejos, siris, moluscos, moquecas, além do sarapatel (prato típico a base de miúdos de porco) e do churrasco.

Se ele não sabia preparar alguma coisa, corria para a internet e pegava a receita e o modo de fazer. Foi o que aconteceu quando certa vez Alice quis aprender a fazer “Brownies”. Já era tempo de pandemia e do portão da casa, em função do respeito à recomendação de distanciamento, ele foi orientando Alice durante todo o processo, até que a sobremesa ficasse pronta e os dois pudessem saborear.

Diabético, Sandoval vivia quebrando a dieta com a ingestão de doces. Ele gostava muito de sorvetes. No domingo de manhã, quando ia à feira para fazer suas compras, não perdia a chance de tomar um caldo de cana com pastel. Isso sem falar da cerveja gelada, da qual ele também não abria mão.

O local predileto para tomar sua cervejinha era um bar no bairro de Fátima. Com o consentimento dos donos do estabelecimento, em casa ele preparava petiscos e levava para dividir com os amigos. Assim, o tira gosto estava garantido enquanto conversavam e jogavam “palitinho” (trata-se de um jogo em que palitos de fósforo são escondidos nas mãos dos jogadores e os participantes tentam adivinhar a soma da quantidade de palitos) e dominó. A amizade rendeu a Sandoval um poema escrito pelo poeta local Agamenon Farias, que em seus versos refere-se ao amigo como a “luz do amor guiando uma bicicleta”.

Outro hábito de “Sandó” eram as viagens. Sempre que não estava trabalhando acompanhava o amigo Elildo em suas viagens a trabalho. Assim, ia junto com o amigo, pois gostava de conhecer lugares novos, passear e, como de costume, por seu jeito muito prestativo, ajudava Elildo no que fosse preciso.

As belas praias de Comandatuba eram outro destino corriqueiro. Sandoval cultivou muitas amizades por lá e não perdia a chance de ir descansar e desfrutas dias de sol. Os passeios de barco com pescadores eram um prazer para ele. Isso sem falar na satisfação que sentia ao saborear o peixe assado na folha de bananeira, uma deliciosa iguaria tradicional dos nativos da ilha. Em meio a isso tudo, Sandoval aproveitava para dançar bastante com a amiga Arly e conversar com o amigo “Tonico”.

A mania de colocar apelido nas pessoas era uma marca de “Sandó”. A filha de coração Alice era chamada de “Bebê” e “Bruxinha”. Por sua vez, o amigo José, era chamado de “Zé Pelanca”. José diz que teve com Sandoval uma amizade boa. Dessas de trocar conselhos e estar perto nas horas ruins. Saudoso, ele acrescenta que Sandoval foi um amigo especial que faz uma falta danada.

Sandoval segue vivo nas andanças de Alice pela cidade que reativam memórias saborosas de momentos felizes e na sensação esquisita da ausência dos diálogos e conselhos sentida pelos parentes e amigos.

Sandoval nasceu em Buerarema (BA) e faleceu em Itabuna (BA), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de coração de Sandoval, Alice Ribeiro Terra. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Elias Lascoski e Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 16 de novembro de 2021.